Eu devo ter aparentado ser frio e cruel em relação à morte
do meu avô. Será que me tornei realmente frio e cruel? Será que já tenho tantas
mortes nas costas que mais uma não me pesa mais? Será que me tornei insensível
à indesejada das gentes? Não consegui fazer um texto como o do meu irmão,
enaltecendo as qualidades do meu avô e relembrando momentos e ensinamentos
muito particulares dele. Ao invés disso, mergulhei num oceano frio e distante,
tratando a morte dele como uma eventualidade qualquer. Talvez a ficha não tenha
caído para mim, mas no fundo sei que não é isso. O que realmente ocorre é que
eu acho que ele não estava vivendo uma vida com dignidade e consciência
suficientes para que eu pudesse considerar uma vida válida de ser vivida.
Embora ele a enfrentasse com particular bom humor. Um humor que certamente eu
não teria se estivesse nas mesmas condições que ele. Seu motorista dizia que
para ele, eu era o neto predileto, talvez porque o primeiro, não sei. Só sei
que foi uma péssima escolha. Um neto perdido, que não consegue se encontrar no
mundo, lugar que vovô estava tão bem acostumado a ocupar. Ele sabia o seu lugar
no mundo e sorvia cada momento de sua existência com vitalidade e alegria. Até
os percalços. Lembro – aliás, Tia Z me lembrou – que fiz uma capa para um
livreto que escreveu quando de sua operação de aneurisma. Um negócio grave, que
ele tratou com profunda leveza e bom-humor. Eu não sou assim. A cada dia me
torno uma figura mais sorumbática e vazia. De sentimentos, de alma. Tem um
verso de Fernando Pessoa que diz que tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Pois para mim, nada deveria valer a pena, pois minha alma encolheu, murchou,
está minúscula. Particularmente hoje nessa madrugada de primeiro de março, às
3h50 da manhã. Minha alma quase nunca esteve tão pequena como agora. É menos
que um sopro, é quase nada, é praticamente só invalidades. Quem deveria ter ido
era eu, que pouca ou nenhuma contribuição ou alegria tenho trazido ao mundo.
Esse mundo que tanto me dá. Estou me sentindo mal hoje. Com a morte de vovô, em
como a encarei, com a frieza que tomou conta do meu ser.
Minha alma é de uma pequenez tão aguda e tão grave que nem
digno de pena ou piedade eu sou. Só de repúdio e escárnio. Eu não mereço a vida
que tenho e mesmo assim, injustamente, a vou levando, quando outros como meu
avô padecem. É tudo tão sem sentido. Tudo tão sem justiça. Tudo tão arbitrário.
Minha pequenina alma grita porque sofre, mas meu sofrimento é um sofrimento
menor, digno da pequenez dela. Minha culpa é gigantesca. Por ter tudo o que
tenho. Sou um sortudo e isso me tortura porque não me sinto merecedor dessa
sorte. É certo que já tive um bom quinhão de sofrimento nessa existência. Que
pensei e tentei desistir dela diversas vezes, mas até nisso sou incompetente.
Tomara que essa existência acabe quando o corpo parar de funcionar. Que o meu
materialismo esteja correto. Só se, em vez da morte, me fundir à Singularidade.
Mas isso é apenas outra fé idiota como as demais. É uma fé materialista, ao
menos. Foi a melhor que consegui encontrar para justificar a existência, como
todos os seus maravilhosos pormenores. Com este pormenor que sou. Realmente não
estou no melhor dos meus humores hoje. Hahahahaha. É um saco. Um chute nos
testículos ser eu nesse exato momento. Mas não é tão dilacerante quanto quando
me encontro em depressão profunda. Perdi o meu avô e me sinto frio e egoísta e
mau por não estar sofrendo um grande luto. Porque não chorei no velório. Porque
não me emocionei com nada. A sociedade cobra, acho eu, tal sofrimento. O
problema é que eu não o possuo para oferecer. Isso me faz sentir deslocado do
mundo e com a alma defeituosa. 4h18. É melhor eu me deitar. Sei que não vou
conseguir dormir, pois estou sem o mínimo sono. Estou é com o máximo de culpa.
Realmente hoje não é bom dia para ser eu. Ah, hoje é Quarta-Feira de Cinzas.
Talvez esteja aí a explicação do meu humor. Estou na ressaca do meu Carnaval, o
qual, quando não com meu avô – vivo ou morto – estava nesse quarto, assistindo
“The Walking Dead” ou digitando palavras tortas aqui. Tomara que as coisas não
piorem mais tarde. Pois podem piorar sempre. Porque minha mãe foi me parir?
Qual o sentido da minha existência? É um extremo desperdício de recursos. Não
ofereço nada de bom à humanidade ou ao ecossistema global. Não faço a mínima
diferença nesse universo. O que diabos estou fazendo aqui? Acho que me sentindo
levemente deprimido. E a culpa me consome. E minha alma se apequena cada vez
mais. O oco dentro de mim é enorme. Acho que só preciso de amor. Acho que
preciso manter minha cabeça no lugar que isso vai passar. Senão hoje,
Quarta-Feira de Cinzas, amanhã. Meu deus, amanhã talvez tenha que enfrentar a
Doutora. Queria que fosse só necessário passar no Manicômio e pegar as
prescrições com a recepcionista e secretária. Não queria ter com a Doutora. Ela
me intimida deveras. Espero já estar mais recomposto daqui para lá.
Meu avô morreu. Isto é um fato. Minha resposta emocional a
este fato foi e é praticamente nula. Preciso botar a cabeça no lugar. Preciso
me recompor. Preciso de tanta coisa que não é coisa. Preciso parar de me sentir
culpado pelo que tenho. Preciso aceitar quem eu sou. Preciso entender que o meu
modo de reagir à morte não significa que ame menos tal ou qual pessoas. Apenas não
vejo na morte a tragédia que a sociedade foi educada a ver. Eu vejo como
libertação. Quando ela vem, ela simplesmente põe fim à miserável condição
humana. Ou de qualquer outro ser vivo. Mas de todos, o mais miserável é o ser
humano, por ter consciência de sua própria miséria, de sua fragilidade, de seu
egoísmo. Temos consciência que a vida não tem propósito a menos que lhe fantasiemos
algum. É apenas uma curva que começa ascendente, que chega ao ápice e depois
começa a decair – fase em que me encontro – de novo ao nada. Éramos todos
poeira cósmica que por algum evento miraculoso se organizou como gente.
Voltaremos a ser poeira cósmica quando nossos corpos se decompuserem. O que
fazer nesse ínterim em que estamos organizados como gente é escolha de cada um.
Se escolha há. Pois há aqueles, como meu padrasto, que não acredita no
livre-arbítrio. Ele acha que nós somos uma engrenagem bioquímica que responde a
estímulos externos e internos de forma quimicamente previsível, caso tivéssemos
poder de processamento para calcular todas as infindas variáveis envolvidas.
Tais incontáveis variáveis é que nos dão a impressão de que temos escolha, mas,
na visão dele, as escolhas já estão tomadas. Na minha opinião, se assim fosse,
não haveria dúvida. Algumas muito cruéis, como as que me deparei ultimamente.
Mas assim é a vida, um grande mistério (ou algo inevitável em um universo
repleto de hidrogênio oxigênio e carbono). Tem dias que não merecem ser
vividos. Este é um deles para mim. Mas o enfrentarei com o pouco de dignidade
que me resta. Se resta alguma. Queria que nada desse tremendamente errado hoje.
Seria um grande presente para minha alma dorida. Falo tanto em alma, mas é só
para ser poético. Acredito que sou um monte de sinapses disparando dentro de um
corpo gordo e feio para os padrões estéticos atuais, que me inunda de
estímulos, estímulos estes aos quais vou respondendo com maior ou menor sucesso
de acordo com os meus paradigmas. Somando-se às coações da sociedade micro e
macro em que estou inserido. Não sei se o que estou escrevendo faz algum
sentido. Não estou preocupado com isso. Estou apenas vomitando o que me vem à
cabeça. E eu sei que não está vindo muita coisa boa. Tem dias em que o cidadão
não está numa boa. Este é um dia assim para mim. Não tenho do que reclamar, entretanto,
têm sido raros os dias em que não gosto de viver. Raríssimos. Espero que atravesse
o dia de hoje sem maiores problemas. Quero dormir bastante. Muito, muito, muito.
Para que esse dia passe logo. 5h00. Faltam ainda 19. Saco. Hoje tem tudo para
ser um dia ruim. Mas nem tudo são flores na vida, não é mesmo? Vou tentar me deitar. Se não conseguir dormir
volto para cá. Estou com medo da minha mãe acordar e me dar o maior esporro.
5h05. Dando as últimas baforadas antes de me deitar. Espero que quando acordar
meu astral esteja melhor.
15h20. O sono é um santo remédio. Estou muito menos infeliz
do que estava quando fui dormir. Às vezes o sono faz evanescer meus maiores
ímpetos, ímpetos que achava válidos na noite/madrugada anterior. Dessa vez,
entretanto, ele me curou do peso na alma que eu carregava ou pelo menos, o
amenizou. Bastante. Estou doente, gripado. Dor na garganta, catarro, moleza. A
febre cedeu. Vou pegar mais um copo de Coca, depois de bebê-lo vou deitar e
relaxar. Quem sabe sonhar um sonho bom e, quem sabe, me lembrar dele... Quando
acordar, vou encarar mais alguns episódios de “The Walking Dead”, eu acho. A
vida agora não me parece nem boa nem ruim, mas, sem dúvida, está muito melhor
do que se me apresentava durante a madrugada. Mil vezes melhor. Ontem estava
carregado de culpa pelas minhas insensibilidades. Hoje nem tanto. O tempo é um
senhor remédio e, embora ele nem sempre esteja do meu lado, hoje resolveu me
estender a mão e me impingir com seu unguento. Estou mole. Detesto quando os
meus textos ficam truncados como este, mas estava com alma truncada quando
escrevi. Isto é apenas um reflexo de mim. Bem ou mal pintado é um autorretrato
que dou forma e cor com as palavras. É o que eu sou e o que eu sinto do melhor
até o pior. Toda a minha ampla mesquinhez e escassa magnanimidade. O cheiro do
líquido do Vaporfi que derramei ontem está impregnando o ambiente aqui. Espero
que a faxineira venha amanhã e troque o pano que me serve de porta-copos. Pois
o odor é muito ativo e enjoativo. Não comecei a jogar Assassin’s Creed e parece
que a tia da minha cunhada já está vindo para o Brasil. Ou seja, talvez os
jogos já estejam aqui no Brasil, pois vi um post dela no Facebook mostrando um
trajeto de vôo de Boston para Nova Iorque. Não sei como vou saber que ela
voltou. Só perguntando ao meu irmão. Mas minha mãe está doente também e vai
passar pela quimioterapia acho que na sexta-feira, então não tem nem quem pegar
os jogos.
16h07. Me perdi olhando os e-mails de propaganda que recebo.
Só recebo e-mails de propaganda, muito raro receber e-mail de alguém
(geralmente minha mãe pedindo para imprimir algum arquivo ou meu irmão querendo
mais detalhes do e-mail que lhe enviei ou mandando as informações que pedi). Coloquei
mais um copo de Coca. Meu sono foi quase todo embora. Estou com uma coriza
chata e me sinto ainda mole, mas não estou com saco de deitar nesse exato
momento. Quando o copo acabar acho que querendo ou não, vou dar uma relaxada.
Já era para eu ter limpado o tanque do Vaporfi, mas enchi de líquido de novo
sem limpá-lo, então está saindo menos fumaça do que o que estou habituado. O
copo de Coca acabou. Vou botar só mais um pouquinho para não desperdiçar o gelo
que sobrou. Estou realmente adoentado, a moleza no corpo e a coriza não negam.
Não é nada de grave, só uma gripe que eu e mamãe pegamos. Não gosto, pois ela e
meu padrasto ficam me enchendo de remédios sem prescrição médica. Acho isso
absurdo, mas não posso dizer não. Ou não sei qual a forma certa, me esqueço o
termo agora, de negar. Lembrei: a forma assertiva de negar. A Coca e o gelo
acabaram, vou dar mais umas baforadas para me deitar.
16h38. Tentei me deitar, mas fiquei impaciente e com frio,
então desliguei o ar e vim assistir o episódio em que parei de TWD.
0h09.
Assisto “The Walking Dead” desde aquela hora. Acho que devida botas
aspas também quando escrevo apenas o acrônimo. Mas deixa para lá. Estou no
primeiro episódio da quinta temporada, a última disponível no Netflix. Ainda
bem. Mas essa começou bem mais empolgante do que a outra. Tensão pura no ar.
Acho que vou fazer um sanduíche para mim e ir me deitar. Ainda não estou
completamente recuperado da gripe. Vou revisar e publicar isso. Aliás, hoje
não. Amanhã o faço.
Recife, 2 de março de 2017.
16h03. Pediram para cada membro da família escrever um texto
sobre vovô para a missa de sétimo dia. O meu saiu mal e porcamente assim: “Criativo,
alegre e cheio de energia como o Carnaval. É assim que lembro de vovô. Sempre
com mil projetos e ideias que sua inesgotável criatividade fazia pipocar em sua
cabeça. Cabeça muito boa, com memória de elefante. Sempre tinha um causo para
contar alegremente de sua rica história de vida. Ele me foi e será eterna fonte
de inspiração de como levar a vida como se todo dia fosse especial. Como se a
vida fosse uma perpétua folia de Carnaval.”
Minha mãe adorou. Espero que dê para o gasto. Espero que
agrade os demais. É péssimo criar textos no WhatsApp. E eu não estava lá como muita
inspiração, não vou mentir. Escrevi o que me veio e o que me pareceu sincero.
Esta é a imagem que guardo e guardarei dele. Vou publicar logo isso.
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