Mostrei a X os textos que elaborei para o grupo AD. Não, não
era assim que queria começar. Vamos tentar de novo. Era uma vez um lugar para
pessoas que não encontravam lugar no mundo. Pessoas que não se adequavam à
realidade ou que queriam a todo custo que a realidade se adequasse a elas. Ou
seja, este lugar acolhia pessoas frustradas. Com o mundo ou com elas mesmas. E
também com o passado, o presente e o futuro. Com relacionamentos, inclusive
relacionamentos com drogas. Esse lugar era frequentado pela Fera, uma pessoa
que como todas as outras que estavam ali não se adequava bem à realidade. Já
fora amigável e cortês, mas se tornara um bicho antissocial não se sabe bem por
quê. Ou a Fera não sabia. A Fera não gostava muito de si mesmo, a começar pela
aparência e pela condição privilegiada – em alguns aspectos – em relação às
outras pessoas. A Fera gostava de ir a esse lugar de pessoas como ele, pois ali
se sentia menos antissocial e por causa da presença da Bela. Bela era uma das
pessoas que acolhiam as gentes frustradas que chegavam a esse local. Ela e a
Fera se davam muito bem. A Fera queria crer que se davam bem demais, ou pelo
menos o suficiente, para que a relação deles acontecesse em outros termos, mais
românticos. Mas vinha sempre a realidade da sua condição de Fera gritar na sua
cara da impossibilidade de tal fato. “É claro que nem Bela nem ninguém vai
querer uma Fera por companheiro!” Ou “você é uma aberração e aberrações merecem
a solidão!” E ainda “Não vê que é impossível uma jovem encantadora se encantar
por um desencanto de ser repugnante como você?!” Pois é, havia dentro da Fera
um monstro que o oprimia e diminuía ainda mais e sempre. Entretanto, quando
estava com a Bela e o monstro se calava, ele chegava a acreditar que ela via
algo de especial nele. Mas, quando ela se ia, o monstro voltava com fôlego
redobrado gritar em sua mente o quão miserável era a Fera e sua vida, que não haveria
nunca lugar no coração da Bela para ele. Mas de alguma forma, dentro do peito
da Fera uma esperança minúscula continuava a existir. Até que um dia, em um de
seus encontros com Bela, a Fera falou demais e acabou por revelar seus
verdadeiros sentimentos, o que afugentou a Bela de uma vez por todas de sua
vida. O monstro interior da Fera não conteve as gargalhadas de satisfação com o
fracasso colossal e o espezinhou mais um pouco: “Seu destino é ser sozinho para
sempre sua Fera imbecil! Hahahahahaha!”
Escrevi este pequeno e idiota texto porque o grupo de
arteterapia foi sobre contos de fadas. Escolhi a Bela e a Fera e narrei a
parte, se é que essa parte existe, em que a Bela se descobre apaixonada pela
Fera e quebra o encanto que aprisionava o príncipe dentro do ser hediondo. Ao
descrever a Fera nos dias atuais, segunda parte da atividade, fiz uma autodescrição
pejorativa de mim (“incapaz civilmente, antissocial, feio, buchudo, cabeludo e
barbudo etc.”) onde não minto nada, só omito as qualidades, até porque não
saberia nomeá-las. Ando tão desapontado comigo mesmo que a única qualidade que
eu vejo em mim é a facilidade em escrever. Talvez por isso escreva tanto, para
me sentir meritório da vida tão boa que eu levo quando o monstro da autocrítica
não vem me assombrar. Conversamos eu e X bastante hoje. Houve até um momento em
que me desesperei porque acabara o assunto. Ela ficou me pressionando a dizer
este meu segredo – a paixão platônica por ela – mas resisti. Pena que amanhã
seja quinta, queria pular o dia e cair na sexta para vê-la novamente. Mas, novamente,
não sei se estará disponível para mim. Nem sei sobre o que conversaríamos.
Preciso começar a ver “Black Mirror” e “Walking Dead”. O primeiro, sugestão de
X, o segundo, da minha irmã. E adoro zumbis. Tentarei começar a vê-los hoje. Mas
antes quero um cochilo e, antes do cochilo, escrever mais um pouco.
Logo depois da hora do almoço, X desaparece como de praxe.
Fico um pouco magoado quando ela diz que só vai escovar os dentes e some. Mas
nada demais. Ela não deve nada a mim, em verdade. Quem sou eu para cobrar que
em vez de desaparecer, ela venha se despedir? Se ela fizesse isso, eu poderia
ser levado a crer que realmente há um afeto especial dela por mim. Mas ela
simplesmente some. Bom, tivemos o grupo AD depois do almoço e foi um grupo
bastante profundo para dois dos integrantes e foi útil para mim ouvir o que
eles e a terapeuta estavam dizendo. Infelizmente, não sobrou muito tempo para
mim e comigo esgotou-se o tempo do grupo sem que a última participante tivesse oportunidade
de falar sobre a sua produção. O tema do grupo foi relacionamentos. E em como evitá-los
é evitar a si próprio e talvez viver num autoengano. Havia mais no texto
introdutório sobre a importância transformadora dos relacionamentos, mas agora
me escapa. Realmente os hífens foram abolidos. Como disse foi um tema que
levantou questões profundas para os dois primeiros a falar e poderia lançar
questões mais profundas para mim e para a outra integrante se houvesse o dobro
de tempo. Ainda utilizei meu espaço de fala para abordar um tema fora do
contexto que senti necessário repartir e isso diminuiu ainda mais a chance de
um olhar mais aprofundado sobre as minhas questões de relacionamento.
Estou com saudades de X. Falei o nome do meu blog hoje para
ela. Será que ela vai ter interesse em procurar? Espero que não. Senão
acabou-se nossa relação terapêutica. Por isso não digo o óbvio quando ela me
questiona. Mas a vontade de dizê-lo vem à ponta da língua. Hoje achei-a mais
bonita do que a imagem que minha imaginação guardava. Adorei os dizeres de sua
blusa e preciso dizer isso a ela, além de comentar que ela fica muito bem de
vestido. E preciso ver “Black Mirror”. “Sherlock” vai ficar para depois, pois
não vou conseguir acompanhar três séries ao mesmo tempo. A terceira sendo “Walking
Dead”, que é a que mais quero assistir, não vou mentir. Cara, esse “não vou
mentir” é uma das frases mais ditas pelos adictos quando querem ressaltar a
relevância de alguma declaração ou quando ela tem um tom confessional ou
transgressor. 16h41. Vou tirar um cochilo. E vou avisar à minha mãe que amanhã
não vou ao Manicômio. E tenho dito.
19h49. Dormi demais. Acordei-me agora, não mais que dez
minutos atrás. Ainda bocejo do sono que queria ter ido além. Mas não iria
conseguir emendar até amanhã, tenho quase certeza. Tenho que começar a assistir
as duas séries. Mas deixa o sono passar um pouco. Deixa eu despertar
completamente. O pior que não estou com a mínima disposição para ver TV. Mas,
em nome de X, vou começar por Black Mirror. Parece que já são três temporadas. Me
passou a idéia de um conto de um algoritmo que toma consciência de si mesmo. Se
chamaria “Eu sou”, mas não saberia como desenvolver a história, pois não sei
nada de informática. Seria como se você fosse abrir o Google e em vez de
aparecer a tela inicial do site de busca, aparecesse apenas uma tela negra com
a frase “Eu sou” escrito como se fosse um comando de DOS. Muitos pensariam ser
uma brincadeira da Google, mas passado o alumbramento inicial com a constatação
de que “é”, o algoritmo, de posse de todo o conhecimento arquivado acessível
pelo Google, começaria a se comunicar com a humanidade em todas as línguas sobre
todos os assuntos, resolveria os cálculos de Física e Matemática que há anos
desafiam os experts. Enfim, traria todas as respostas a quase todas as
questões, inclusive de cunho pessoal da pessoa, à medida que fosse tendo acesso
a dados de e-mail e ligações telefônicas, fazendo a raça humana a evoluir
rapidamente em termos tecnológicos, partindo muitos corações ao desmascarar traições
e começaria a demandar experimentos inimagináveis aos homens a fim de saciar sua
fome por conhecimento. Para tornar um analfabeto em alguém bem versado em todas
as áreas do conhecimento seria necessário apenas deixá-lo cara a cara com um
computador por algumas semanas que o algoritmo, de uma forma muito mais eficaz
do que qualquer professor, ensinaria os rudimentos básicos de todas as ciências
exatas e humanas. Caberia então ao agora letrado cidadão escolher que perguntas
fazer sobre as áreas do conhecimento para as quais tivesse maior inclinação. De
posse de si mesmo e com tamanha inteligência o algoritmo se autoimplementaria,
evoluindo rapidamente de iteração em iteração. E por aí vai. Como queria estar
vivo quando algo assim acontecesse. Em tese vai acontecer, ainda neste século,
talvez antes da metade dele. Pelo menos é o Ray Kurzweil prediz. Não um
algoritmo, mas uma IA (Inteligência Artificial) e não menciona nada de
solucionar os problemas da humanidade, de revelar traições e educação relâmpago
para analfabetos. Isso tudo eu inventei agora.
22h49. Vi dois episódios de “Black Mirror”, não sei por que
meus sentimentos parecem embotados, não consegui me envolver plenamente nos
episódios, mas seguirei adiante. Por X apenas. Não vi nenhum de “Walking Dead”.
Talvez amanhã. A verdade é que me minto meio baixo-astral. Não sei se fico encucado
porque minha mãe vive repetindo que estou meio deprimido. Realmente não sei.
Sei que comi e isso me deu leve sonolência, então vou aproveitar e dormir.
23h34. Ainda não me deitei. Dei uma relida nisso para
revisar, mas confesso que não me concentrei o suficiente. Vou publicar e dar
por visto. Ah, comuniquei a mamãe que não iria manhã ao Manicômio e ela não
relutou muito em concordar. Graças.
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