19h46. Não achei o estilo do post anterior tão diferente do
meu escrever cotidiano quanto julgava, embora em certos momentos tenha
exagerado na dose. Dar uma variada no repertório de palavras, entretanto, me
pareceu uma boa ideia. E tentar transmitir com mais precisão o que quero
comunicar. Reparti o post anterior com a garota da noite por ter mencionado
muito a sua pessoa, mas esqueci que mencionava também sobre o internamento.
Agora já foi, mais uma trapalhada para o currículo. A página em branco
funcionou. Me sinto mais eu escrevendo nesse momento. Sim, tentar enviar os
e-mails com o “Diário do Manicômio” para os donos do Albergue de Drogados.
20h25. Tentei sem sucesso todos os métodos que dispunha.
Tentarei ligar amanhã novamente para pedir o e-mail do Albergue. Hoje deve ser
dia de festa por lá.
20h33. Estou um pouco triste e decepcionado que Montaigne
tenha “desincorporado” de mim. Acho que não consigo mais emulá-lo. Tanto melhor,
que seja.
20h41. Me encontro esvaziado de conteúdo e isso é o que de
pior pode haver para um escritor. Ainda estou espantado em como o meu estilo
mudou depois que publiquei o post anterior. É quase como se tivesse realmente
Montaigne baixado em mim por um post apenas, coisa tão estranha quanto a
anterior.
20h46. Não adianta, não tenho nada a dizer. Em que estava
pensando? Estava a observar o busto do Hulk que tenho aqui no meu quarto-ilha e
admirar a harmonia da escultura. Por mais que a anatomia esteja toda equivocada
o conjunto funciona, sou fascinado por esta peça e acho que nunca deixarei de
ser. É cedo para dizer, a possuo há menos de um mês. É interessante, mas com a
sua presença não me sinto tão solitário no meu quarto-ilha a exemplo, muito
mais exacerbado, da bola Wilson para o personagem de “Náufrago”. Aliás, todas
as estátuas que tenho expostas me transmitem esse mesmo sentimento falso de
companhia. Por falso que seja, é ainda assim confortador. Me sinto culpado de
deixar a minha mãe solitária na sala.
21h06. Fui lá e interagi um pouco com ela. Ela me fez tomar
os remédios. Eu estou achando que não vou convencê-la de me tirar do Manicômio
nessa segunda. O que é algo que está me angustiando. Temo a minha volta para
lá, com tão pouco a ser lido não sei o que farei do meu tempo a não ser
saborear o insípido tédio. Espero não ter havido nenhuma tragédia entre os meus
colegas de quarto. Há dois lá muito esquentadinhos que não estão se batendo. E
podem vir a se bater de fato. A não ser que sejam dois cães que só saibam ladrar.
Não sei. Sei que terei a conversa com mamãe amanhã. Se achar apropriado, digo.
Acho que tenho o direito de ao menos expor meu lado. Seria uma doce surpresa se
conseguisse convencê-la e acredito que mereço esse voto de confiança.
Sinceramente acho. Lembro das palavras que uma colega de internamento disse
para mim, “não volte, não. Isso não é lugar de gente, não”. Só quem passa pode
aferir o quão tenebroso é estar lá. Se eu quisesse recair, eu recairia amanhã,
pois acho que o comércio será aberto.
22h30. Tive a conversa com mamãe e ficou acordado que ela me
tiraria de lá no sábado que vem. Isso se a Doutora não tiver outros planos e
persuadir minha mãe a segui-los, mas acredito que isso não vá acontecer. Ou
assim quero crer. Combinamos de ir ao rodízio amanhã. Excelente. Faz muito
tempo que não vou a um rodízio de carnes e é um lugar que desperta o meu mais
profundo interesse, é um lugar de delícias e fartura, de pecar pela gula. E é o
que farei, muito embora não tenha mais o apetite que tinha antigamente. Mas
acho que ainda comerei mais que o valor do dinheiro empregado em um dos meus
lanches McDonald’s que equivale ao preço do rodízio. Preferia ir à noite, por
ser mais barato e por sentir mais fome nesse período do dia. Mas se formos pela
manhã ficarei igualmente satisfeito. Acho que a negociação foi bem-sucedida. Acho
que consigo suportar mais cinco dias naquele lugar. Terei que suportar, não há
outro modo. Não vou criar caso por causa disso. Mas vou ainda negociar que me
tire na sexta quando sair do encontro dos alunos. Qualquer tempo a menos
naquele ambiente viciado me será benéfico.
-x-x-
1h09. Tive um desarranjo intestinal agora como nunca havia
me ocorrido, melei o pijama, a colcha, o colchão e o banheiro. Foi
incontrolável. Que coisa vergonhosa. Por que será que isso se deu comigo? Será
que foi alguma coisa que eu comi? O meu quarto cheira a merda, fedentina nojenta,
pior que terei que dormir na minha cama, pois não sei se o fenômeno pode se dar
de novo. Tomei um banho e me lavei. Com a camisa, limpei o chão. Tinha que
haver alguma coisa para estragar um dia que de outro modo teria sido
completamente feliz e produtivo. Espero que tenha sido um ataque de uma vez só,
senão inviabilizará a minha ida ao restaurante amanhã.
-x-x-x-x-
10h16. Acordei com minha mãe espantada com a diarreia
pontual que me acometeu durante a noite. Acha que pode ser reflexo ainda da
intoxicação com cola, eu realmente não sei a causa. Falando em cola e lembrando
que estou fora do Manicômio coloquei o novo do U2, “Songs Of Experience”, para
celebrar a minha liberdade. Me parece que Montaigne desapareceu por completo de
mim, não posso negar que sinto saudades da sua influência. Se ela se faz é de
modo tão sutil que não me apercebo dela.
10h42. Mamãe fez um café delicioso para mim e o acompanhei
com o último cigarro da minha carteira. Há outra, graças. Fumei mais do que o
esperado nesses últimos dias, mas houve o agravante de a bateria do meu Vaporfi
acabar enquanto em Porto de Galinhas ontem e ter que apelar para os cigarros. Mesmo
assim fumei mais do que pensava ou pretendia. Sobre o que tratar agora que minha
mente ainda está turva pelo sono interrompido? Como pude aferir, pela conversa
que tive com mamãe sobre a minha alta, ela me manterá mais por si própria e
seus receios do que por achar terapêutico para mim. É a vida. Disse que “trabalharia”
para me tirar na sexta. Queria o sábado, mas a convenci a me tirar na véspera
para que não tenha que dormir lá um dia a mais o que seria um fardo
desnecessário. Espero que mamãe cumpra com o combinado. É o tempo necessário
para que acabe o livro e quem sabe incorpore Montaigne uma vez mais. Uma última
vez, pois nada mais tenho dele para ler. Ele possuía ideias à frente de seu
tempo, embora ainda embotado pelo machismo da época e por isso traça um perfil
um tanto caricatural e exagerado das mulheres e de seus papéis sociais. Não há
como culpá-lo tendo vivido na época em que viveu, no século XVI. E, pela mesma
feita, não posso eu querer emular o estilo do autor e ser agradável ao leitor de
hoje, embora ache sua escrita bastante acessível, tanto que eu que não tenho
por hábito ler o compreendo perfeitamente. E em condições pouco favoráveis à
leitura, para dizer o mínimo, cercado por loucos e loucas a fazer barulho
somados a uma televisão. Nem acredito que voltarei para lá. E nem acredito que
minha alma não se abala muito com esse prognóstico. Acho que me acostumei com a
vida no Manicômio, o que é péssimo. Quando estou do lado de fora, entretanto,
não anseio voltar, mas, uma vez lá, tudo me parece familiar e o que é familiar
não desagrada. Me acostumei com a vida de internado no Manicômio. Não sei se
isso é uma felicidade ou o seu oposto, sei que pelo menos não sofro como sofria
outrora. De fato, me tornei um rato de clínica, ou mais precisamente rato do
Manicômio. Não o trocaria pela Clínica de Drogados por nada. Por falar em nada,
isso é tudo que tenho para fazer lá não tivera eu levado o livro dos “Ensaios”.
Lidar com esse ócio tedioso é a principal batalha a ser travada no Manicômio.
Como é sabido, ando com dificuldade para a conversação, então mesmo em meio aos
meus, calo muito mais que comunico e quando tento as palavras parecem que me
enrolam a língua e se escondem e tenho considerável dificuldade de falar. Isso
me incomoda tremendamente. Estou inclusive desenvolvendo problemas de dicção,
mas acho que isso se deve antes ao posicionamento dos meus dentes da arcada
superior que vêm separando com o tempo e tenho problema em pronunciar o “r”. Além
disso, pelo fumo – tanto do cigarro quando do Vaporfi – minha voz está perdendo
sua potência e não raro alguém me pede para repetir o que acabei de dizer.
Contados todos esses fatores, sou dado mais a ouvir que proferir.
12h25. Falei com o meu irmão, liguei para ele pelo WhatsApp,
pois vive nos EUA. Foi uma conversa rápida, amigável e amorosa.
12h55. Aproveitei e resolvi ligar para a minha irmã. Estou
torcendo para que consiga comprar o tão sonhado imóvel próprio. Parece ter
encontrado um que lhe atende todas as necessidades, está só à espera de o banco
aceitar o financiamento. Tenho esperança de que tudo dará certo. Se você,
leitor, souber rezar a inclua em suas orações, pois eu sou descrente e não
posso fazê-lo, mas creio que ela seja merecedora dessa graça.
13h03. Me peguei pensando em qual a razão de estar fazendo
terapia. E não consegui encontrá-la. Isso me deixou cismado. Penso estar velho
e cristalizado demais para que se operem mudanças no meu espírito. Espero estar
completamente enganado a respeito disso.
13h08. Incrível como mamãe tem muito mais a tratar com a
minha irmã que com o meu irmão. Talvez porque ambas sejam mulheres haja uma
identificação maior. Não sei se mulheres são mais prolixas que homens ao
telefone, mas não acredito em tais sexismos, já vi homens falarem minutos a fio
ao celular. Acho que o problema reside mais no meu irmão e em mim que na minha
irmã e minha mãe. Acho que nós – eu e meu irmão – não gostamos muito de
conversas telefônicas. Eu, como havia dito, tenho problemas com conversas em
geral. Acho que emitir opiniões sem o devido embasamento um desperdício de
palavras e não gosto de me passar por isso. Curiosamente aqui opino sobre tudo
e todos, mas aqui é o local para ser ridículo e me revelar na minha futilidade.
Aqui não sinto como se comprometesse minha imagem emitindo opiniões, o que é um
grave engano ao qual faço vista grossa. Não encontrarei, como não encontro, o
mesmo reconhecimento que Montaigne teve por sua obra, pois hoje, com as
ferramentas que dispomos e o número de habitantes e habitantes alfabetizados
bem ou mal, há uma miríade de escritores e pretendentes a escritores por aí.
Sou apenas mais uma gota no oceano e nada trago que possa me destacar da
multidão. Além disso, sou muito prolixo, pois tudo o que faço é escrever.
Poderia fatiar os posts, mas isso só faria multiplicar o número de publicações
artificialmente. Prefiro continuar a fazer tudo à minha maneira, por torta e
equivocada que seja, na contramão de tudo o que pregam ser de bom senso fazer
para angariar leitores, qual seja, a meu entender, texto de parágrafos curtos,
repleto de imagens e infográficos. Isso a mim me parece uma camisa de força na
qual não encontraria a liberdade de me expressar livremente. E não há nada que
deseje menos.
13h28. Me peguei agora com a mente atormentada com o
regresso para casa e para a minha rotina e o que me provocou mais estranheza foi
a vontade que me deu de retornar ao Manicômio. Não posso estar com a minha
cabeça no lugar certo. Não posso ter me tornado de tal maneira um rato de
clínica a ponto de ansiar pelo encarceramento num ambiente doente.
13h47. Voltando a uma questão anterior, o que quero alcançar
com a terapia? Acho que essa foi a questão que Ju tentou aferir com a sua
metáfora do outono. Eu confesso que não sei, me encontro perdido em mim. Ao
mesmo tempo que não quero mudar nada na minha vida, anseio que tudo mudasse. A
única coisa que vislumbro capaz de conciliar vontades tão antagônicas é uma
namorada. Que respeitasse e entendesse meus hábitos. Como respeitaria e
entenderia os dela. Mas tudo em mim, a forma como me coloco no mundo, me
distancia desse intento. Então, talvez o que tenha que mudar seja precisamente
isso, a forma como me coloco no mundo. Como desejaria me colocar no mundo?
Gostaria de ter mais entrosamento com ele e com as pessoas. Em especial com as
mulheres.
14h05. A grande vantagem que vejo no Manicômio é que, se eu
não causo estresse, não sofro estresse. E as leis são poucas e simples a ponto
de um louco as compreender. O resto é livre. Se pudesse ter um computador ali
dentro e nenhum louco o viesse destruir, um perigo real, suportaria passar mais
tempo lá. Penso em levar o meu iPod, mas isso ainda não é uma ideia enraizada,
aliás, não o levarei pelo perigo de roubo e porque não quero me alienar do
ambiente e dos meus companheiros. O que terá decorrido lá desde que saí? Espero
não encontrar o ambiente pior do que o deixei. Espero que o Pequeno Buda
continue lá. Se não vai ser ainda mais tedioso e muito menos familiar. Pensando
bem, quero sair logo de lá. A única coisa que me motivaria a ficar seria se uma
gatinha não muito louca se internasse e eu pudesse trocar longos papos com ela,
o que não vai ocorrer. E se ocorrer, provavelmente ela irá para o anexo feminino,
o que significa o mesmo que não haver garota alguma lá. E não queria que fosse
Nina. Por mais encantadora que seja, me cansei dela e de seu desprezo, do não
nutrir nada além de amizade. E estou fora de relações com borderlines.
14h28. O tédio me assola aqui também no meu quarto-ilha. A
ida ao Spettus foi adiada para amanhã, o que não deixa de ser frustrante. Mas
amanhã espero que seja garantida. Farei de tudo para que seja. Embora, neste
exato momento, não tenha fome alguma.
14h47. Do que posso tratar agora? Minha mente se encontra
esvaziada, embora a mente nunca esteja de fato vazia, a não ser que se medite
para isso, coisa para a qual não tenho a mínima inclinação, ou vocação ou
disposição. Terei que ir ao supermercado com a minha mãe mais tarde. Espero
muito que esteja vazio, sendo hoje sábado de um feriadão. Uma das baterias do
meu Vaporfi já dá sinais de exaustão, não dura muito tempo e carrega rápido
demais. Tenho medo da bateria do Nintendo Switch quase sempre sendo alimentada
continuamente pela fonte. Ouvi dizer que isso acaba com a vida útil da bateria.
Por isso o tirei ontem da base e o desliguei. Não me sinto motivado a jogar o
Super Mario Odyssey o que para mim é algo que me aflige. Acho que quando voltar
para casa em caráter definitivo eu reative o PS3. Não sei, não me sinto
inclinado a isso tampouco. O que posso fazer para me livrar desse tédio?
15h05. Fui responder um teste sobre felicidade, mas não
entendi a aferição das pontuações em relação à minha, não havia nenhuma que
contemplasse a pontuação que fiz. Curioso. Teste inútil. Quem pode aferir a
felicidade de outrem com 14 perguntas? A pergunta tem que ser uma e direta, na
minha opinião, e respondida no primeiro impulso, você é feliz? Não sei.
Certamente não sou triste e de tristeza entendo bem, já estive em depressão
profunda mais vezes do que desejaria. Mas passou e hoje vivo sem muitas
alegrias ou tristezas, num estado de estagnação do espírito. Às vezes acho que
passo uma sensação ruim para as pessoas. Mas acho que essa calmaria da alma tem
a ver com a idade e a maturidade. Posso estar enganado, mas não sou tomado por
grandes paixões negativas ou positivas. Talvez esse estado de espírito seja
resultado das medicações que me mantém num equilíbrio neuroquímico que me
impede oscilar violentamente para um lado ou para o outro. Nossa, não acredito
que vou viajar, como não queria fazer isso. Como não queria nada, só ficar aqui
digitando a esmo, gerando com as palavras uma barreira para o tédio. Acho que
minha mãe parou de ler os meus diários. Nem ela, tão ciosa de mim, aguentou
meus textos. Cada vez tenho mais claro que faço isso para mim mesmo e para mais
ninguém. O que é frustrante e desmotivador. Mas continuarei seguindo o que meu
espírito anseia.
16h11. Fui almoçar e comi bastante. Não sei se isso tem
alguma correlação com o desarranjo da noite anterior que espero que não se
repita.
-x-x-
19h13. Minha mãe está indecisa se vai ao supermercado. Disse
que tomará a decisão quando acabar o capítulo do seriado. Acho que acabará por
ir e é para isso que preparo o meu espírito.
19h20. Estou ouvindo o álbum novo do U2 que se tornou
sinônimo da minha liberdade. Preciso lembrar – embora saiba que irei esquecer –
de dizer a Ju que a cor com que desenhei o quadrado em volta de mim no desenho
que me pediu para fazer foi a cor predileta do meu pai. Acho que isso pode ter
alguma relevância. O que dizer do meu pai? Foi uma pessoa correta e brilhante e
sempre muito duro consigo mesmo ao mesmo passo que era generoso e magnânimo com
os demais. Foi a pessoa mais culta e inteligente e perfeccionista que conheci. Todos
esperavam de mim, por me mostrar (de uma forma que me escapa) muito inteligente
quando criança, que seguisse seus passos em termos de brilhantismo em todos os
aspectos. Ao menos foi assim que recebi, interpretei e assimilei as
expectativas a meu respeito e desde sempre me cobrei demais e desde sempre
falhei em emulá-lo. Alguma coisa ou a maioria das coisas em mim estavam em
desacordo com a imagem do eu ideal que construíra em minha cabeça e o fracasso
foi colossal. O que hoje me tornei é quase que o inverso dessas expectativas
que acreditei terem a meu respeito. Não sei sinceramente por que tudo, como eu
percebia, apontava para uma direção e decidi seguir na direção oposta. Talvez
para me reafirmar com indivíduo livre e de escolhas próprias, talvez para
escapar às inevitáveis comparações com o meu pai, nas quais sempre seria eu
quem sairia perdendo, diminuído em meu valor. Pois em verdade nunca estive à
altura da imagem que fiz dele. Quando chegou a época de escolher o que fazer
para o vestibular, desde que descobri sobre a existência de vestibular,
descoberta tardia para minha felicidade, decidi não fazer nada que me levasse a
ter o meu pai como professor, para que ele não descobrisse quão medíocre eu era
como aluno. Foi meu pai quem me levou ao centro de Artes da universidade para
uma demonstração ao público dos cursos lá oferecidos. O meu entendimento sobre
tal ato foi de que teria que sair dali com a minha profissão decidida e decidi
pela a que pareceu me dar mais dinheiro, a Publicidade. Satisfeito por não ter
que ter aula com o meu pai e sem saber muito da vida e das profissões prestei
vestibular para o curso escolhido, terceiro mais concorrido à época em que fiz
as provas, e por alguma intervenção divina passei. Levei a faculdade nas coxas,
como se diz, mais preocupado com os trocados para tomar cerveja que com o
estudo, me formei e já saí contratado de uma agência. O resto já narrei aqui em
um post ou outro. Acho que vou mandar esse trecho para Ju, pois certamente não
lembrarei de dizer-lhe tudo isso e acho que tenha alguma relevância para o meu
tratamento.
20h13. Mandei o e-mail. Minha mãe ainda não se decidiu se
vai ou não. Não sei o que esperar.
20h18. Ela me parece ainda irresoluta, mas me chamou para
ir. E respondi “vamos”. Vamos ver o que decorrerá dessa interação.
20h27. Até agora nada decorreu. Passando “Landlady” do U2,
meu hino de liberdade.
20h38. Minha mãe decidiu ir.
-x-x-
22h03. Voltamos. Foi rápido, muito mais rápido do que
poderia supor. Houve pressão da minha parte para que fosse assim. Embora a
neurologista top que mamãe consultou não tenha a diagnosticado com nenhum tipo
de doença, ela guardou o copo de leite que me deu pela manhã dentro do armário.
Descobriu-o agora quando foi pegar um dos meus remédios. Isso me preocupa.
Espero muito que seja reflexo do remédio contra o câncer e, mesmo que seja,
minha mãe vai ter que tomá-lo por mais uma década aproximadamente. Juntei-me de
coragem para dizer-lhe que se quisesse desistir do remédio, esta era uma decisão
que cabia somente a ela, que as opiniões contrárias não contavam, que eu
entenderia e acolheria. Entretanto cheguei lá e o máximo que fiz foi
pergunta-lhe se poderia suspender o remédio por um período para ver se as suas
dores e cognição melhorariam. Achei até que foi o mais sensato a lhe dizer. Ela
tem sofrido bastantes com os inúmeros efeitos colaterais do tratamento, mais do
que seria justo. Acho que meu iPod morreu. Minha liberdade está chegando ao
fim. O fato de ter tido o desarranjo ontem me enche de receios para dormir
hoje, a expectativa da repetição do fato, que racionalmente acho improvável de
acontecer, mas, para o bem e para o mal, não sou só razão e o temor existe e
persiste. Tirei um cochilo hoje à tarde sem intercorrências. O que conta
positivamente a favor da não repetição do ocorrido. As marcas da tragédia não
saíram completamente da colcha e do lençol após duas ou três lavagens seguidas.
Se fosse buscar uma causa, culparia uma comida do Manicômio que comi dias antes
e que tinha cheiro de podre, algo nela estava definitivamente podre embora não
tenha conseguido identificar o que fosse, sei somente que havia algo azedo pois
o cheiro me invadiu as narinas assim que o prato me foi servido. Mas não tenho
certeza que tenha sido isso. Sei que foi um evento traumático e que gera
pensamentos catastróficos de incontinência fecal. Não gosto disso e chega de
escatologia.
22h43. Preciso ouvir esse disco do U2 em volume alto para
poder captar os arranjos, a voz de Bono está mixada mais alto que todo o resto.
“Landlady” acho a melhor e mais bela canção do disco. Estou com a história de
estar num período outonal de troca de folhas do meu ser sugerida por Ju. Acho
que um relacionamento com uma pessoa tão festeira como a garota da noite
estaria fadado ao fracasso devido ao fato de ser tão caseiro. Ou não. Se ela
não se incomodasse em ir sozinha para as baladas e eu me deixasse aqui sozinho
com as minhas palavras. Minhas palavras, palavras minhas, meus bens mais
preciosos e queridos. Palavras em vão que vão para o mundo e este não lhes
demonstra nenhum interesse. Triste sina a do escritor não lido.
23h23. O almoço no rodízio foi cancelado, o que é uma pena,
estava muito animado para ir. Mas não posso reclamar, nessa saída de final de
semana vi o mar, a família, escrevi, curti o meu quarto o máximo que pude e
ainda tenho o dia de amanhã inteiro para aproveitar. Minha mãe não foi tão
convicta quanto eu gostaria que fosse quanto a me tirar na sexta-feira. Espero
que não dê para trás. Espero encontrar lá tudo e principalmente todos como
estavam. Espero que a paz reine e que nenhum mal elemento tenha ingressado no Manicômio
para tumultuar o que tem sido até agora uma estadia pacífica. O mais
problemático é por coincidência um dos estressadinhos do meu quarto. Por outro
lado, ele é bem conversador e isso ajuda a passar o tempo. Torço muito que o
Pequeno Buda não resolva subir para a Clínica de Drogados imaginando que eu não
voltarei. Sua companhia é importante e me alegra. É uma pessoa querida. E sem
futuro. O futuro lhe é negado por seus próprios pais que preferem ao custo do
plano de saúde o manter enclausurado, com alimentação, teto, energia, saúde e
saneamento garantidos, mesmo que para isso o obriguem à clausura sem fim. É
desumano e imoral o que os pais fazem com o Pequeno Buda. E os anos passam e a
idade vai o distanciando das oportunidades do mercado de trabalho. Lembrando
que precisa ainda se qualificar para ele. É um dos casos mais tristes que
conheço. E ele é muito passivo e ansioso o que prejudica tudo.
0h04. Vou dar uma de profeta e prever que daqui a duas
gerações não haverá mais rodízios de carnes ou que estes serão vistos com
extremo preconceito pela juventude. Haverá petições para o fechamento de tais
estabelecimentos e dentro de cem, cento e cinquenta anos eles deixarão de
existir. A população mundial se tornará nos países mais esclarecidos
predominantemente vegetariana ou vegana. Nossa, que mundo chato esse vai ser
para mim, ainda bem que não caminharei mais sobre ele. Pelo menos não com este
corpo que agora habito, serei um com a supraconsciência terrestre. Com o
consciente coletivo. Chega de delírios.
0h15. A perspectiva de voltar ao Manicômio empresta ao meu
quarto um valor e importância que não dou a ele cotidianamente, é um sentimento
bom que também senti de maneira muito sólida quando cheguei do meu uso de cola
e minha mãe e meu padrasto ainda dormiam e pude desfrutar da minha liberdade
por cerca de uma hora antes de ser despejado no Manicômio. Soube que minha mãe
e meu padrasto foram bater no Albergue de Drogados para onde disse que iria
após o uso e fiquei comovido com as penúrias por que passaram e a dedicação
deles para comigo. Acho que foram ao Albergue de Drogados para me “resgatar”
para o Manicômio. Não sei, não posso dar certeza da intenção de irem até lá. Mas
isso explica a sacola já estar dentro do carro.
0h36. Estava procurando concursos literários para os quais
pudesse enviar o “Diário do Manicômio” mas não achei nenhum, infelizmente.
1h00. Me perdi na internet em busca de concursos, mas acho
que o que preciso realmente é de um apoio de peso e só consigo pensar nos donos
do Albergue de Drogados. Eles bem que podiam me dar essa força. Acho que
preciso revisar uma vez mais o texto todo. Adotar os mesmos pseudônimos para as
personagens da história desde o começo. Está batendo o sono, mas ainda estou
com fome. Vou comer um pouco da batata frita que comprei, tomar Coca e fumar
meu último cigarro da noite.
1h41. Vou me retirar. Quando acordar reviso e posto.
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