domingo, 1 de abril de 2018

PÁGINA EM BRANCO




19h46. Não achei o estilo do post anterior tão diferente do meu escrever cotidiano quanto julgava, embora em certos momentos tenha exagerado na dose. Dar uma variada no repertório de palavras, entretanto, me pareceu uma boa ideia. E tentar transmitir com mais precisão o que quero comunicar. Reparti o post anterior com a garota da noite por ter mencionado muito a sua pessoa, mas esqueci que mencionava também sobre o internamento. Agora já foi, mais uma trapalhada para o currículo. A página em branco funcionou. Me sinto mais eu escrevendo nesse momento. Sim, tentar enviar os e-mails com o “Diário do Manicômio” para os donos do Albergue de Drogados.

20h25. Tentei sem sucesso todos os métodos que dispunha. Tentarei ligar amanhã novamente para pedir o e-mail do Albergue. Hoje deve ser dia de festa por lá.

20h33. Estou um pouco triste e decepcionado que Montaigne tenha “desincorporado” de mim. Acho que não consigo mais emulá-lo. Tanto melhor, que seja.

20h41. Me encontro esvaziado de conteúdo e isso é o que de pior pode haver para um escritor. Ainda estou espantado em como o meu estilo mudou depois que publiquei o post anterior. É quase como se tivesse realmente Montaigne baixado em mim por um post apenas, coisa tão estranha quanto a anterior.

20h46. Não adianta, não tenho nada a dizer. Em que estava pensando? Estava a observar o busto do Hulk que tenho aqui no meu quarto-ilha e admirar a harmonia da escultura. Por mais que a anatomia esteja toda equivocada o conjunto funciona, sou fascinado por esta peça e acho que nunca deixarei de ser. É cedo para dizer, a possuo há menos de um mês. É interessante, mas com a sua presença não me sinto tão solitário no meu quarto-ilha a exemplo, muito mais exacerbado, da bola Wilson para o personagem de “Náufrago”. Aliás, todas as estátuas que tenho expostas me transmitem esse mesmo sentimento falso de companhia. Por falso que seja, é ainda assim confortador. Me sinto culpado de deixar a minha mãe solitária na sala.

21h06. Fui lá e interagi um pouco com ela. Ela me fez tomar os remédios. Eu estou achando que não vou convencê-la de me tirar do Manicômio nessa segunda. O que é algo que está me angustiando. Temo a minha volta para lá, com tão pouco a ser lido não sei o que farei do meu tempo a não ser saborear o insípido tédio. Espero não ter havido nenhuma tragédia entre os meus colegas de quarto. Há dois lá muito esquentadinhos que não estão se batendo. E podem vir a se bater de fato. A não ser que sejam dois cães que só saibam ladrar. Não sei. Sei que terei a conversa com mamãe amanhã. Se achar apropriado, digo. Acho que tenho o direito de ao menos expor meu lado. Seria uma doce surpresa se conseguisse convencê-la e acredito que mereço esse voto de confiança. Sinceramente acho. Lembro das palavras que uma colega de internamento disse para mim, “não volte, não. Isso não é lugar de gente, não”. Só quem passa pode aferir o quão tenebroso é estar lá. Se eu quisesse recair, eu recairia amanhã, pois acho que o comércio será aberto.

22h30. Tive a conversa com mamãe e ficou acordado que ela me tiraria de lá no sábado que vem. Isso se a Doutora não tiver outros planos e persuadir minha mãe a segui-los, mas acredito que isso não vá acontecer. Ou assim quero crer. Combinamos de ir ao rodízio amanhã. Excelente. Faz muito tempo que não vou a um rodízio de carnes e é um lugar que desperta o meu mais profundo interesse, é um lugar de delícias e fartura, de pecar pela gula. E é o que farei, muito embora não tenha mais o apetite que tinha antigamente. Mas acho que ainda comerei mais que o valor do dinheiro empregado em um dos meus lanches McDonald’s que equivale ao preço do rodízio. Preferia ir à noite, por ser mais barato e por sentir mais fome nesse período do dia. Mas se formos pela manhã ficarei igualmente satisfeito. Acho que a negociação foi bem-sucedida. Acho que consigo suportar mais cinco dias naquele lugar. Terei que suportar, não há outro modo. Não vou criar caso por causa disso. Mas vou ainda negociar que me tire na sexta quando sair do encontro dos alunos. Qualquer tempo a menos naquele ambiente viciado me será benéfico.

-x-x-

1h09. Tive um desarranjo intestinal agora como nunca havia me ocorrido, melei o pijama, a colcha, o colchão e o banheiro. Foi incontrolável. Que coisa vergonhosa. Por que será que isso se deu comigo? Será que foi alguma coisa que eu comi? O meu quarto cheira a merda, fedentina nojenta, pior que terei que dormir na minha cama, pois não sei se o fenômeno pode se dar de novo. Tomei um banho e me lavei. Com a camisa, limpei o chão. Tinha que haver alguma coisa para estragar um dia que de outro modo teria sido completamente feliz e produtivo. Espero que tenha sido um ataque de uma vez só, senão inviabilizará a minha ida ao restaurante amanhã.

-x-x-x-x-

10h16. Acordei com minha mãe espantada com a diarreia pontual que me acometeu durante a noite. Acha que pode ser reflexo ainda da intoxicação com cola, eu realmente não sei a causa. Falando em cola e lembrando que estou fora do Manicômio coloquei o novo do U2, “Songs Of Experience”, para celebrar a minha liberdade. Me parece que Montaigne desapareceu por completo de mim, não posso negar que sinto saudades da sua influência. Se ela se faz é de modo tão sutil que não me apercebo dela.

10h42. Mamãe fez um café delicioso para mim e o acompanhei com o último cigarro da minha carteira. Há outra, graças. Fumei mais do que o esperado nesses últimos dias, mas houve o agravante de a bateria do meu Vaporfi acabar enquanto em Porto de Galinhas ontem e ter que apelar para os cigarros. Mesmo assim fumei mais do que pensava ou pretendia. Sobre o que tratar agora que minha mente ainda está turva pelo sono interrompido? Como pude aferir, pela conversa que tive com mamãe sobre a minha alta, ela me manterá mais por si própria e seus receios do que por achar terapêutico para mim. É a vida. Disse que “trabalharia” para me tirar na sexta. Queria o sábado, mas a convenci a me tirar na véspera para que não tenha que dormir lá um dia a mais o que seria um fardo desnecessário. Espero que mamãe cumpra com o combinado. É o tempo necessário para que acabe o livro e quem sabe incorpore Montaigne uma vez mais. Uma última vez, pois nada mais tenho dele para ler. Ele possuía ideias à frente de seu tempo, embora ainda embotado pelo machismo da época e por isso traça um perfil um tanto caricatural e exagerado das mulheres e de seus papéis sociais. Não há como culpá-lo tendo vivido na época em que viveu, no século XVI. E, pela mesma feita, não posso eu querer emular o estilo do autor e ser agradável ao leitor de hoje, embora ache sua escrita bastante acessível, tanto que eu que não tenho por hábito ler o compreendo perfeitamente. E em condições pouco favoráveis à leitura, para dizer o mínimo, cercado por loucos e loucas a fazer barulho somados a uma televisão. Nem acredito que voltarei para lá. E nem acredito que minha alma não se abala muito com esse prognóstico. Acho que me acostumei com a vida no Manicômio, o que é péssimo. Quando estou do lado de fora, entretanto, não anseio voltar, mas, uma vez lá, tudo me parece familiar e o que é familiar não desagrada. Me acostumei com a vida de internado no Manicômio. Não sei se isso é uma felicidade ou o seu oposto, sei que pelo menos não sofro como sofria outrora. De fato, me tornei um rato de clínica, ou mais precisamente rato do Manicômio. Não o trocaria pela Clínica de Drogados por nada. Por falar em nada, isso é tudo que tenho para fazer lá não tivera eu levado o livro dos “Ensaios”. Lidar com esse ócio tedioso é a principal batalha a ser travada no Manicômio. Como é sabido, ando com dificuldade para a conversação, então mesmo em meio aos meus, calo muito mais que comunico e quando tento as palavras parecem que me enrolam a língua e se escondem e tenho considerável dificuldade de falar. Isso me incomoda tremendamente. Estou inclusive desenvolvendo problemas de dicção, mas acho que isso se deve antes ao posicionamento dos meus dentes da arcada superior que vêm separando com o tempo e tenho problema em pronunciar o “r”. Além disso, pelo fumo – tanto do cigarro quando do Vaporfi – minha voz está perdendo sua potência e não raro alguém me pede para repetir o que acabei de dizer. Contados todos esses fatores, sou dado mais a ouvir que proferir.

12h25. Falei com o meu irmão, liguei para ele pelo WhatsApp, pois vive nos EUA. Foi uma conversa rápida, amigável e amorosa.

12h55. Aproveitei e resolvi ligar para a minha irmã. Estou torcendo para que consiga comprar o tão sonhado imóvel próprio. Parece ter encontrado um que lhe atende todas as necessidades, está só à espera de o banco aceitar o financiamento. Tenho esperança de que tudo dará certo. Se você, leitor, souber rezar a inclua em suas orações, pois eu sou descrente e não posso fazê-lo, mas creio que ela seja merecedora dessa graça.

13h03. Me peguei pensando em qual a razão de estar fazendo terapia. E não consegui encontrá-la. Isso me deixou cismado. Penso estar velho e cristalizado demais para que se operem mudanças no meu espírito. Espero estar completamente enganado a respeito disso.

13h08. Incrível como mamãe tem muito mais a tratar com a minha irmã que com o meu irmão. Talvez porque ambas sejam mulheres haja uma identificação maior. Não sei se mulheres são mais prolixas que homens ao telefone, mas não acredito em tais sexismos, já vi homens falarem minutos a fio ao celular. Acho que o problema reside mais no meu irmão e em mim que na minha irmã e minha mãe. Acho que nós – eu e meu irmão – não gostamos muito de conversas telefônicas. Eu, como havia dito, tenho problemas com conversas em geral. Acho que emitir opiniões sem o devido embasamento um desperdício de palavras e não gosto de me passar por isso. Curiosamente aqui opino sobre tudo e todos, mas aqui é o local para ser ridículo e me revelar na minha futilidade. Aqui não sinto como se comprometesse minha imagem emitindo opiniões, o que é um grave engano ao qual faço vista grossa. Não encontrarei, como não encontro, o mesmo reconhecimento que Montaigne teve por sua obra, pois hoje, com as ferramentas que dispomos e o número de habitantes e habitantes alfabetizados bem ou mal, há uma miríade de escritores e pretendentes a escritores por aí. Sou apenas mais uma gota no oceano e nada trago que possa me destacar da multidão. Além disso, sou muito prolixo, pois tudo o que faço é escrever. Poderia fatiar os posts, mas isso só faria multiplicar o número de publicações artificialmente. Prefiro continuar a fazer tudo à minha maneira, por torta e equivocada que seja, na contramão de tudo o que pregam ser de bom senso fazer para angariar leitores, qual seja, a meu entender, texto de parágrafos curtos, repleto de imagens e infográficos. Isso a mim me parece uma camisa de força na qual não encontraria a liberdade de me expressar livremente. E não há nada que deseje menos.

13h28. Me peguei agora com a mente atormentada com o regresso para casa e para a minha rotina e o que me provocou mais estranheza foi a vontade que me deu de retornar ao Manicômio. Não posso estar com a minha cabeça no lugar certo. Não posso ter me tornado de tal maneira um rato de clínica a ponto de ansiar pelo encarceramento num ambiente doente.

13h47. Voltando a uma questão anterior, o que quero alcançar com a terapia? Acho que essa foi a questão que Ju tentou aferir com a sua metáfora do outono. Eu confesso que não sei, me encontro perdido em mim. Ao mesmo tempo que não quero mudar nada na minha vida, anseio que tudo mudasse. A única coisa que vislumbro capaz de conciliar vontades tão antagônicas é uma namorada. Que respeitasse e entendesse meus hábitos. Como respeitaria e entenderia os dela. Mas tudo em mim, a forma como me coloco no mundo, me distancia desse intento. Então, talvez o que tenha que mudar seja precisamente isso, a forma como me coloco no mundo. Como desejaria me colocar no mundo? Gostaria de ter mais entrosamento com ele e com as pessoas. Em especial com as mulheres.

14h05. A grande vantagem que vejo no Manicômio é que, se eu não causo estresse, não sofro estresse. E as leis são poucas e simples a ponto de um louco as compreender. O resto é livre. Se pudesse ter um computador ali dentro e nenhum louco o viesse destruir, um perigo real, suportaria passar mais tempo lá. Penso em levar o meu iPod, mas isso ainda não é uma ideia enraizada, aliás, não o levarei pelo perigo de roubo e porque não quero me alienar do ambiente e dos meus companheiros. O que terá decorrido lá desde que saí? Espero não encontrar o ambiente pior do que o deixei. Espero que o Pequeno Buda continue lá. Se não vai ser ainda mais tedioso e muito menos familiar. Pensando bem, quero sair logo de lá. A única coisa que me motivaria a ficar seria se uma gatinha não muito louca se internasse e eu pudesse trocar longos papos com ela, o que não vai ocorrer. E se ocorrer, provavelmente ela irá para o anexo feminino, o que significa o mesmo que não haver garota alguma lá. E não queria que fosse Nina. Por mais encantadora que seja, me cansei dela e de seu desprezo, do não nutrir nada além de amizade. E estou fora de relações com borderlines.

14h28. O tédio me assola aqui também no meu quarto-ilha. A ida ao Spettus foi adiada para amanhã, o que não deixa de ser frustrante. Mas amanhã espero que seja garantida. Farei de tudo para que seja. Embora, neste exato momento, não tenha fome alguma.

14h47. Do que posso tratar agora? Minha mente se encontra esvaziada, embora a mente nunca esteja de fato vazia, a não ser que se medite para isso, coisa para a qual não tenho a mínima inclinação, ou vocação ou disposição. Terei que ir ao supermercado com a minha mãe mais tarde. Espero muito que esteja vazio, sendo hoje sábado de um feriadão. Uma das baterias do meu Vaporfi já dá sinais de exaustão, não dura muito tempo e carrega rápido demais. Tenho medo da bateria do Nintendo Switch quase sempre sendo alimentada continuamente pela fonte. Ouvi dizer que isso acaba com a vida útil da bateria. Por isso o tirei ontem da base e o desliguei. Não me sinto motivado a jogar o Super Mario Odyssey o que para mim é algo que me aflige. Acho que quando voltar para casa em caráter definitivo eu reative o PS3. Não sei, não me sinto inclinado a isso tampouco. O que posso fazer para me livrar desse tédio?

15h05. Fui responder um teste sobre felicidade, mas não entendi a aferição das pontuações em relação à minha, não havia nenhuma que contemplasse a pontuação que fiz. Curioso. Teste inútil. Quem pode aferir a felicidade de outrem com 14 perguntas? A pergunta tem que ser uma e direta, na minha opinião, e respondida no primeiro impulso, você é feliz? Não sei. Certamente não sou triste e de tristeza entendo bem, já estive em depressão profunda mais vezes do que desejaria. Mas passou e hoje vivo sem muitas alegrias ou tristezas, num estado de estagnação do espírito. Às vezes acho que passo uma sensação ruim para as pessoas. Mas acho que essa calmaria da alma tem a ver com a idade e a maturidade. Posso estar enganado, mas não sou tomado por grandes paixões negativas ou positivas. Talvez esse estado de espírito seja resultado das medicações que me mantém num equilíbrio neuroquímico que me impede oscilar violentamente para um lado ou para o outro. Nossa, não acredito que vou viajar, como não queria fazer isso. Como não queria nada, só ficar aqui digitando a esmo, gerando com as palavras uma barreira para o tédio. Acho que minha mãe parou de ler os meus diários. Nem ela, tão ciosa de mim, aguentou meus textos. Cada vez tenho mais claro que faço isso para mim mesmo e para mais ninguém. O que é frustrante e desmotivador. Mas continuarei seguindo o que meu espírito anseia.

16h11. Fui almoçar e comi bastante. Não sei se isso tem alguma correlação com o desarranjo da noite anterior que espero que não se repita.

-x-x-

19h13. Minha mãe está indecisa se vai ao supermercado. Disse que tomará a decisão quando acabar o capítulo do seriado. Acho que acabará por ir e é para isso que preparo o meu espírito.

19h20. Estou ouvindo o álbum novo do U2 que se tornou sinônimo da minha liberdade. Preciso lembrar – embora saiba que irei esquecer – de dizer a Ju que a cor com que desenhei o quadrado em volta de mim no desenho que me pediu para fazer foi a cor predileta do meu pai. Acho que isso pode ter alguma relevância. O que dizer do meu pai? Foi uma pessoa correta e brilhante e sempre muito duro consigo mesmo ao mesmo passo que era generoso e magnânimo com os demais. Foi a pessoa mais culta e inteligente e perfeccionista que conheci. Todos esperavam de mim, por me mostrar (de uma forma que me escapa) muito inteligente quando criança, que seguisse seus passos em termos de brilhantismo em todos os aspectos. Ao menos foi assim que recebi, interpretei e assimilei as expectativas a meu respeito e desde sempre me cobrei demais e desde sempre falhei em emulá-lo. Alguma coisa ou a maioria das coisas em mim estavam em desacordo com a imagem do eu ideal que construíra em minha cabeça e o fracasso foi colossal. O que hoje me tornei é quase que o inverso dessas expectativas que acreditei terem a meu respeito. Não sei sinceramente por que tudo, como eu percebia, apontava para uma direção e decidi seguir na direção oposta. Talvez para me reafirmar com indivíduo livre e de escolhas próprias, talvez para escapar às inevitáveis comparações com o meu pai, nas quais sempre seria eu quem sairia perdendo, diminuído em meu valor. Pois em verdade nunca estive à altura da imagem que fiz dele. Quando chegou a época de escolher o que fazer para o vestibular, desde que descobri sobre a existência de vestibular, descoberta tardia para minha felicidade, decidi não fazer nada que me levasse a ter o meu pai como professor, para que ele não descobrisse quão medíocre eu era como aluno. Foi meu pai quem me levou ao centro de Artes da universidade para uma demonstração ao público dos cursos lá oferecidos. O meu entendimento sobre tal ato foi de que teria que sair dali com a minha profissão decidida e decidi pela a que pareceu me dar mais dinheiro, a Publicidade. Satisfeito por não ter que ter aula com o meu pai e sem saber muito da vida e das profissões prestei vestibular para o curso escolhido, terceiro mais concorrido à época em que fiz as provas, e por alguma intervenção divina passei. Levei a faculdade nas coxas, como se diz, mais preocupado com os trocados para tomar cerveja que com o estudo, me formei e já saí contratado de uma agência. O resto já narrei aqui em um post ou outro. Acho que vou mandar esse trecho para Ju, pois certamente não lembrarei de dizer-lhe tudo isso e acho que tenha alguma relevância para o meu tratamento.

20h13. Mandei o e-mail. Minha mãe ainda não se decidiu se vai ou não. Não sei o que esperar.

20h18. Ela me parece ainda irresoluta, mas me chamou para ir. E respondi “vamos”. Vamos ver o que decorrerá dessa interação.

20h27. Até agora nada decorreu. Passando “Landlady” do U2, meu hino de liberdade.

20h38. Minha mãe decidiu ir.

-x-x-

22h03. Voltamos. Foi rápido, muito mais rápido do que poderia supor. Houve pressão da minha parte para que fosse assim. Embora a neurologista top que mamãe consultou não tenha a diagnosticado com nenhum tipo de doença, ela guardou o copo de leite que me deu pela manhã dentro do armário. Descobriu-o agora quando foi pegar um dos meus remédios. Isso me preocupa. Espero muito que seja reflexo do remédio contra o câncer e, mesmo que seja, minha mãe vai ter que tomá-lo por mais uma década aproximadamente. Juntei-me de coragem para dizer-lhe que se quisesse desistir do remédio, esta era uma decisão que cabia somente a ela, que as opiniões contrárias não contavam, que eu entenderia e acolheria. Entretanto cheguei lá e o máximo que fiz foi pergunta-lhe se poderia suspender o remédio por um período para ver se as suas dores e cognição melhorariam. Achei até que foi o mais sensato a lhe dizer. Ela tem sofrido bastantes com os inúmeros efeitos colaterais do tratamento, mais do que seria justo. Acho que meu iPod morreu. Minha liberdade está chegando ao fim. O fato de ter tido o desarranjo ontem me enche de receios para dormir hoje, a expectativa da repetição do fato, que racionalmente acho improvável de acontecer, mas, para o bem e para o mal, não sou só razão e o temor existe e persiste. Tirei um cochilo hoje à tarde sem intercorrências. O que conta positivamente a favor da não repetição do ocorrido. As marcas da tragédia não saíram completamente da colcha e do lençol após duas ou três lavagens seguidas. Se fosse buscar uma causa, culparia uma comida do Manicômio que comi dias antes e que tinha cheiro de podre, algo nela estava definitivamente podre embora não tenha conseguido identificar o que fosse, sei somente que havia algo azedo pois o cheiro me invadiu as narinas assim que o prato me foi servido. Mas não tenho certeza que tenha sido isso. Sei que foi um evento traumático e que gera pensamentos catastróficos de incontinência fecal. Não gosto disso e chega de escatologia.

22h43. Preciso ouvir esse disco do U2 em volume alto para poder captar os arranjos, a voz de Bono está mixada mais alto que todo o resto. “Landlady” acho a melhor e mais bela canção do disco. Estou com a história de estar num período outonal de troca de folhas do meu ser sugerida por Ju. Acho que um relacionamento com uma pessoa tão festeira como a garota da noite estaria fadado ao fracasso devido ao fato de ser tão caseiro. Ou não. Se ela não se incomodasse em ir sozinha para as baladas e eu me deixasse aqui sozinho com as minhas palavras. Minhas palavras, palavras minhas, meus bens mais preciosos e queridos. Palavras em vão que vão para o mundo e este não lhes demonstra nenhum interesse. Triste sina a do escritor não lido.

23h23. O almoço no rodízio foi cancelado, o que é uma pena, estava muito animado para ir. Mas não posso reclamar, nessa saída de final de semana vi o mar, a família, escrevi, curti o meu quarto o máximo que pude e ainda tenho o dia de amanhã inteiro para aproveitar. Minha mãe não foi tão convicta quanto eu gostaria que fosse quanto a me tirar na sexta-feira. Espero que não dê para trás. Espero encontrar lá tudo e principalmente todos como estavam. Espero que a paz reine e que nenhum mal elemento tenha ingressado no Manicômio para tumultuar o que tem sido até agora uma estadia pacífica. O mais problemático é por coincidência um dos estressadinhos do meu quarto. Por outro lado, ele é bem conversador e isso ajuda a passar o tempo. Torço muito que o Pequeno Buda não resolva subir para a Clínica de Drogados imaginando que eu não voltarei. Sua companhia é importante e me alegra. É uma pessoa querida. E sem futuro. O futuro lhe é negado por seus próprios pais que preferem ao custo do plano de saúde o manter enclausurado, com alimentação, teto, energia, saúde e saneamento garantidos, mesmo que para isso o obriguem à clausura sem fim. É desumano e imoral o que os pais fazem com o Pequeno Buda. E os anos passam e a idade vai o distanciando das oportunidades do mercado de trabalho. Lembrando que precisa ainda se qualificar para ele. É um dos casos mais tristes que conheço. E ele é muito passivo e ansioso o que prejudica tudo.

0h04. Vou dar uma de profeta e prever que daqui a duas gerações não haverá mais rodízios de carnes ou que estes serão vistos com extremo preconceito pela juventude. Haverá petições para o fechamento de tais estabelecimentos e dentro de cem, cento e cinquenta anos eles deixarão de existir. A população mundial se tornará nos países mais esclarecidos predominantemente vegetariana ou vegana. Nossa, que mundo chato esse vai ser para mim, ainda bem que não caminharei mais sobre ele. Pelo menos não com este corpo que agora habito, serei um com a supraconsciência terrestre. Com o consciente coletivo. Chega de delírios.

0h15. A perspectiva de voltar ao Manicômio empresta ao meu quarto um valor e importância que não dou a ele cotidianamente, é um sentimento bom que também senti de maneira muito sólida quando cheguei do meu uso de cola e minha mãe e meu padrasto ainda dormiam e pude desfrutar da minha liberdade por cerca de uma hora antes de ser despejado no Manicômio. Soube que minha mãe e meu padrasto foram bater no Albergue de Drogados para onde disse que iria após o uso e fiquei comovido com as penúrias por que passaram e a dedicação deles para comigo. Acho que foram ao Albergue de Drogados para me “resgatar” para o Manicômio. Não sei, não posso dar certeza da intenção de irem até lá. Mas isso explica a sacola já estar dentro do carro.

0h36. Estava procurando concursos literários para os quais pudesse enviar o “Diário do Manicômio” mas não achei nenhum, infelizmente.

1h00. Me perdi na internet em busca de concursos, mas acho que o que preciso realmente é de um apoio de peso e só consigo pensar nos donos do Albergue de Drogados. Eles bem que podiam me dar essa força. Acho que preciso revisar uma vez mais o texto todo. Adotar os mesmos pseudônimos para as personagens da história desde o começo. Está batendo o sono, mas ainda estou com fome. Vou comer um pouco da batata frita que comprei, tomar Coca e fumar meu último cigarro da noite.

1h41. Vou me retirar. Quando acordar reviso e posto.





Nenhum comentário:

Postar um comentário