sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Diários de um Manicômio II



19 de agosto de 2011

Segundo dia. O remédio para dormir deu uma moleza, um peso bom e, lógico, sono. Calhei de cair em um quarto onde o “veterano” não gostava de ar condicionado porque “o frio lhe fazia mal à cara, ao nariz”. O calor me foi suportável enquanto estava sob o efeito do Dalmadorm e até que o novo interno (que chegou de maca depois de mim, no final da tarde), de fraldas e tubo de soro acordasse sem sabe onde estava e crente de que era o diabo. Tentei tranqüilizá-lo dizendo que o que não faltava aqui eram diabos e que os medicamentos e os tratamentos daqui o fariam ficar mais calmo, ter tempo para pensar e ver que não era tão diabo assim. Ele me pediu que eu relatasse tudo o que acabara de dizer à sua mulher. Respondi que não podia, mas poderia relatar à enfermeira para auxiliá-lo melhor. Aproveitei para arrumar uma solução para o ar. Mandaram-me para um quarto do andar de cima com ar e sem travesseiro. Bem melhor. Senti, enquanto deixava o primeiro quarto, o cheiro de merda levada pela água enquanto davam banho, de portas abertas mesmo, no paciente de fraldas. Pedi outro Dalmadorm (uma facilidade aqui) e fui dormir.

Acordei bem e atrasado, mas não sonolento. Tomei café e recebi o comentário de um dos novos companheiros de quarto de que ronco muito. Irrelevante e inevitável. Coisa de quarto comunitário. Não tive coragem ou material para defecar ainda. Me parece anti-higiênico e desconfortável, pois não vi assentos no banheiro comunitário onde urinei. Almocei e jantei tranqüilamente e bem; logo o bolo fecal deve estar formado.

Os dois personagens da arenga do caderno que aconteceu ontem à noite acabaram de escrever, juntos, uma carta de amor para a mãe do que rasgou o caderno e parece que o resultado o deixou bastante emocionado, pois ele está agora aos prantos.  É bonito de se ver. É bonito ver loucos. A pureza e a sinceridade/espontaneidade pueris. Continuo com a sensação que estou entre iguais. Pela transparência das emoções, dos desejos, relações, repressões.

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Houve aula de modelagem em barro (sobre aquelas tabuletas giratórias que garantem às mãos habilidosas transformar bolotas disformes de argila em simétricos de vasos, copos, cinzeiros, garrafas, mealheiros etc). Novamente as portas da ala feminina se abriram e nós nos misturamos. Como dormi à tarde, perdi a maior parte desta comunhão e acabei ganhando do artesão um cinzeiro que o desafiei a fazer assimétrico, contrariando a própria natureza de sua arte e da ferramenta que utiliza. Se der, posto uma foto do arremedo que ele fez com as bordas do cinzeiro para tentar atender o meu inatendível pedido.

(Nota 11/11/11: não trouxeram meu cinzeiro do albergue de drogados depois da segunda recaída, por isso, nada de fotos do bichinho.)

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Descobri que o nome dela não é Anelise, mas Adeline, muito mais bonito (e nomes são coisas muito importantes para mim quando se trata de mulheres). Ela é muito, muito, muito inacessível. Metade de si está trancada no mundo dela (que julgo ser muito mais bonito, encantado e infantil que o nosso [ou que o meu sem a cola]). A vontade de cuidá-la, de curá-la – o que quer que isso signifique para ela, para mim, para nós – persiste.

Às vezes percebo que dei um passo em sua direção, noutro, penso que regredi três. Uma coisa que um dos internos mencionou hoje é que “se a pessoa não tiver cabeça boa aqui, começa a ficar doido também”. Não sei, não acho. Talvez, se não houver simpatia, se houver resistência em aceitar as diferenças (aqui maiores e mais díspares que em qualquer lugar) acabamos por ser subjugados por elas. Quanto a mim, não sinto isso, posto que me sinto meio doido desde muito antes. Tanto que fico assustado em como a “sociedade/civilização/família” me assusta, a ponto de eu reprimir minha loucura desejada, de esconder o que eu quero ser e me acorrentar no que é esperado que eu seja, dado o meu “grande potencial produtivo” (obrigado Gabi!). Tão assustado estou e tão assustadiço fiquei que empaquei como uma mula. E me sinto homem da máscara de ferro, grudada sobre minha cara até que eu perca a minha identidade e nem lembre quem fui ou sonhei ser antes da máscara.

A cola remove essa máscara e me vejo. E me lembro. E me sinto. E eu sou belo de uma beleza incompreensível a eles. Uma beleza que só consigo mostrar a mim mesmo. (Adendo 02/09/11 Eu espelho de mim. Eu espelho do universo. Eu sou o universo. O universo conspirou de sua forma complexa e indescritível para que eu acontecesse. Conspirou para que eu tivesse a oportunidade de retirar a máscara. E conspira contraditoriamente para repô-la de novo e de novo. Mas ele me deu o livre arbítrio e a escolha de removê-la e removê-la até que desistam de colocá-la em mim ou até que eu tenha a força necessária para jogá-la na profundeza de todas as profundezas, onde ninguém mais a alcançará.)

Sinto o remédio já pesando no juízo. Uma preguiça e lentidão gostosas. Relaxamento. Relaxar é bom. É intelectualmente improdutivo.

Continuo achando que a cola pode ter fins terapêuticos para mim e para outros. Seria imperativo, de alguma forma, gravar os pensamentos, de onde eles surgem e se espalham dentro da rede neural, de acordo com a intensidade/profundidade da intoxicação.

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Dar um tempo, fumar um cigarro para ver se há algo – especialmente Algo Adeline – para colocar na página. Ela tinha coração de chocolate ontem. Hoje é de morango. O meu eu disse que era de sorvete de baunilha. E mantenho.

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Fumar

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Interagi mais com Adeline agora. Ela se aproximou da grade, perto de onde eu estava e conversamos conversas quebradas, pois não conseguimos “sincronizar” bem nossos processos mentais. Mas há interesse dela em gastar pedacinhos de tempo dela comigo. Eu aproveito para cuidá-la, curá-la, da forma deficiente de que sou capaz. Queria um papel para escrever e entregar algo a ela. Faz tempo que não me relaciono de forma tão “recíproca” com outra garota. O interessante é que essa relação é, para mim, mais paternal. Esse sentimento é bom de uma forma nova.  É como ter uma filha cujos defeitos não vieram de mim, nem da minha educação como pai, mas pelo que foi destruído antes de mim ou se desconstruiu antes de mim, logo não tenho nenhuma culpa pelo que ela é, apenas sinto uma certa responsabilidade pelo que ela será depois de mim. E, apesar de tudo que possa estar quebrado, ainda há uma beleza infantil, de fada voando em um mundo mágico dentro dela. E ela tem olhos, nariz, cabelos e mãos bonitos. E um jeito encolhido e contraditoriamente descontraído.

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