Este foi um sonho que tive semanas após a morte do meu pai e de uma recaída.
I
Minha irmã arruma as malas para voltar à Europa. Vejo que ela tem um novo iPod (os iPods que minha irmã tem no sonho são idênticos aos que minha mãe possui na vida real). Pergunto a minha irmã se ela vai levar os dois (querendo em verdade saber se ela não me daria um deles). Ela sabe que gosto de música e nunca tive um iPod. A pergunta sai já sabendo que a resposta é não. (Nos sonhos, algumas vezes antevejo/pressinto o que vai acontecer [geralmente coisas ruins].)
A resposta, como esperado, é de que ela levaria, sim, os dois iPods (ou seja, “não, não tem boquinha pra você, não”). Para a minha surpresa, entretanto, ela me lembra (é estranho lembrar o que não se sabe) de um terceiro iPod, mais “feio” e mais velho, que ela havia prometido me dar (este, sim, sem mais nenhuma serventia para ela, pois fora um presente indesejado, de alguém indesejado e, portanto, carregava um valor simbólico negativo para a minha irmã, além de ser obsoleto [a mim me pareceu que fora dado por um ex-namorado que ainda queria namorá-la]).
Fiquei muito feliz com o presente-migalha, pois era um iPod e tinha as mesmas funcionalidades (e, para mim, ao contrário da minha irmã, por ser o modelo velho, era mais bonito que os modernos). Animado, fui tentar colocar nele um CD que gosto muito (não me recordo qual) para poder dar um passeio e assistir o mundo com minha trilha sonora particular.
Infelizmente, descobri que para colocar as músicas no iPod era necessário conexão à internet e não houve jeito de eu me conectar, pois eu não tinha – e, principalmente, ninguém me confiava – a senha. Lembro que cogitei levar o iPod para algum bar ou restaurante que disponibilizasse gratuitamente o serviço.
(Não sei se a internet é necessária para passar músicas para um iPod na vida real, mas no sonho era.)
Emoções despertadas: alternância de frustrações e alegrias, de expectativas e decepções.
II
Enquanto tentava uma solução para o dilema mexendo inutilmente no dispositivo (que agora crescera e assumira as dimensões de um laptop [não sendo mais nem um pouco portátil ou discreto para caminhar ouvindo um som]), vi pela TV a transmissão de um megashow de MPB acontecido em outro estado. Era um show reunindo três medalhões da nossa música: Milton Nascimento e outros dois que tive a sensação de serem Chico e Caetano. Para a minha surpresa, em uma área super VIP da platéia estava meu pai, muito doente (magro, frágil, lento, gagá, alesado [e, a meu ver, por causa da inteligência diminuída/destruída pela doença, muito feliz, puramente e puerilmente feliz, alegre e contente]). Além dele estavam minha tia que é, no mundo real, muito doente (e estava do seu jeito doente de sempre dos últimos tempos), seu marido (irmão do meu pai) e creio que outro(s) tio(s). Uma pequena comitiva familiar, enfim. Era como se os irmãos de papai, sabendo que ele estava para morrer, tivessem organizado tudo para que o show parecesse estar sendo feito especialmente para ele, para dar-lhe uma alegria última, um agrado antes da morte. A “armação”, por assim dizer, era óbvia para mim (que estava são e assistia pela TV), mas não para o meu pai, que, em seu estado de alheamento, achava ser tudo uma questão de sorte, coincidência, bênção divina (em vez de bênção da família, o que ele perceberia como engodo/enganação/trapaça/sacanagem/piada de mal gosto – tudo menos bênção). Papai estava encantado com o fato de os artistas falarem com ele, lhe dedicarem músicas, ou que ele aparecesse em destaque nos telões nalguns trechos da transmissão. (Encantamento este totalmente diferente do que meu pai demonstraria na sua discreta vida real, caso ainda tivesse vida [embora essa contradição no sonho não tenha me causado nenhum estranhamento].)
Emoções: pena.
III
Repentina e inesperadamente, papai volta para casa (onde estou). E, mais incrível ainda, ele continua a se lembrar do show (pois no sonho, a memória recente dele apagava-se de um dia para o outro, todo santo dia, como acontecia com Drew Barrymore no filme 50 Dates With You [que vi recentemente]). Ele chega bastante feliz. A percepção de que a invalidez mental faz bem para a sua alma é irrefutável para mim. É estranho vê-lo tão contente e feliz mesmo estando tão fodido. Mas nem tudo muda e ele fica bravo com a organização dos livros numa estante, um detalhe irrelevante para nós (filhos), que realmente cuidamos dela de forma desleixada para seus rígidos padrões de organização enquanto ele estava fora.
Num misto de culpa e contrariedade, arrumo a estante meio de qualquer jeito, para que meu pai achasse que me importei como ele se importa com aquilo, meio que para enganá-lo, pois eu sabia que, dentro em breve, ele não lembraria/ligaria para a estante. Eu não podia ligar menos para aquela estante. Aliás, minto: me incomodava com ela, pois, de certa forma, a estante estava diferente porque eu havia colocado algumas coisas que queria lá para tê-las mais à mão.
Não foi só meu pai que chegou, mas todo o pessoal de Natal/show. Lembro que, mal eles chegaram, meus irmãos inventaram uma desculpa e saíram para não conviverem com o pai moribundo. Percebo no ar, por parte da família, o sentimento de “nós trazemos o pai para passar os últimos momentos de alegria com os filhos e eles fogem por não conseguirem suportar a dor em prol deste último agrado ao paizinho que tanto precisa”. Sei que esse sentimento se aplica a mim também porque, como meus irmãos, eu quero sair dali e transpareço isso por cada poro.
Emoções: culpa; raiva por, apesar de tudo, papai continuar o mesmo nas irritantes insignificâncias; culpa.
IV
Estamos à mesa de jantar e é constrangedor, doloroso, triste, deprimente, feio. São quatro lugares numa mesa quadrada e pequena. Num deles está meu pai (à minha frente, olhando para mim com um riso feliz, oco de juízo, infantil, permanente, bebê, magro e gagá). Nos demais estão a minha tia doente e Maria, a mulher que me criou, que, por algum injustíssimo e bizarro infortúnio, possui agora apenas cabeça e pescoço, postos em cima da mesa, em frente ao prato muito branco e limpo. Não lembro de conversa ou de comida. Lembro da vontade de tentar dizer alguma coisa, de tornar a situação menos ruim e do nó na garganta de não conseguir, de não saber como fazê-lo.
Emoções: angústia, aversão, culpa, obrigação.
V
Pego o carro da minha mãe escondido e saio (não tenho carteira e não sei dirigir direito). É uma super picape (que acho que nem existe), dessas que passam por todos os terrenos, alta, com rodas enormes, linda, nova, caríssima. É fácil de dirigir por causa de sua marcha automática e pela sensação de que ela passa sem dificuldade e com conforto por qualquer terreno. Isso me agrada. Me agrada também ver as coisas do alto da picape (bem mais alta que os outros carros). (Lembro, porém, que, embora a sensação seja boa, não é fantástica, nem é tão divertida quando parece/parecia).
Apesar de todas as facilidades do veículo, pela minha inexperiência e pelo medo/ansiedade de voltar para casa a tempo de minha mãe não descobrir minha trela, começo a fazer besteiras no trânsito, melo os pneus de barro (rosa e muito) e acabo por colidir na garagem do prédio com uma grande e cara estrutura de vidro, sob os olhares de reprovação de várias pessoas, inclusive funcionários do condomínio. Sem condições emocionais de estacionar o carro e com a merda já feita subo meio que com o pensamento de “depois dou um jeito”. De imediato, penso que preciso estar em casa para adiar a descoberta da cagada.
Emoções: euforia passageira, decepção, culpa, desespero, medo.
VI
Mal chego em casa, a porta toca. É a moça da portaria vindo comunicar o sinistro. Tento conversar com ela em particular no elevador, para dar um jeito, mas minha mãe me segue e tudo é revelado. Minha mãe começa, merecidamente, a me detonar e todos os familiares me reprovam com olhares e bochichos torturantes. Por alguma razão C. também está lá e minha mãe me diz que ele acha até que eu deveria ir para a cadeia pelo que fiz. Fico arrasado com aquele julgamento, mais que com os outros. Para minha surpresa, meu pai entra então no elevador (onde, oniricamente, todas estas pessoas estão). Fraco, magro, lento e com um sorriso alheio de amor incondicional por mim, se ajoelha e abre os braços. É um amor tão grande, tão sincero, puro, pueril, paternal e carinhoso que o meu por ele parece menor. Num misto de culpa (por achar que ele só está me abraçando daquela forma porque está doente/senil) e de alívio, de saudade e de amor eu me abraço muito apertado com ele. Eu quero muito chorar. Eu me sinto obrigado a chorar. Os músculos da minha cara se contraem meio que por obrigação, meio porque espontaneamente minha alma chora. Preciso que se contraiam. Por mim, pela dor que precisa vazar. Enfim, as tão sonhadas lágrimas vêm, porém poucas, num choro insuficiente, menor do que tudo o que eu precisava chorar ou do que a platéia esperava que eu chorasse.
Nesse momento C. aponta para mim e diz veemente, como se proferisse o veredicto definitivo, máximo e inquestionável: “Ele está mentindo! Ele está mentindo.” Fala como se no meu abraço só houvesse a parte obrigação, como se não houvesse amor nem calor ao apertar o corpo morno e magro do meu pai com muita força para perto do meu.
“Ele está mentindo.”
Acordei.
Emoções: culpa incrivelmente torturante, carinho muito profundo por meu pai.
:(
ResponderExcluirGostaria de lembrar tão bem dos meu sonhos como você.
Só lembro de estar armando um guarda-sol gigantte e preto na frente da casa de Porto de titia enquanot papai em pé, perto de onde estava, assiste a um campeonato de surf que acontecia ali.