sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Diários de um Manicômio VIII - Parte 2

26 de agosto de 2011



Falar de amor. Meu amor tem muitas faces, nunca a minha. Meus amores em sua enorme maioria são paixões de um lado só. Me acostumei a amar só para mim, o amor abstrato e etéreo dos românticos, sem necessidade de oferecer/compartilhar a solidez da minha feiúra, a monstruosidade dos meus defeitos. Até porque temo descobrir em minhas musas as monstruosidades ou defeitos que todos nós, medíocres ou anormais, escondemos mais ou menos embaixo do manto da civilidade de verniz, da beleza estética etc.

Prefiro as paixões platônicas, eternas despedidas, parcelada frustração do inevitável nunca aliada à sempre perfeita irrealidade do ser idealizado.

Resolvi chamar todas essas minhas paixões-amores-sonhos de “Clementine”, porque gosto do som, gosto do filme e nunca conheci, de fato, uma.

Clementine também porque lembra a “clemência”, como se meu coração (meu eu mais fundo), meu corpo, minha saliva, minha língua, narinas, pênis e dedos e mãos pedissem mais que sonhos, pedissem algo mais concreto e macio e cheiroso e molhado e humano que intocáveis musas.

Nem sei mais o que é amar esse amor de carne e suor e pêlos. Sei amar cada vez mais a cola e nela cada vez mais encontro a minha realidade, o meu verdadeiro eu. Como se o seu solvente gradativamente removesse o verniz da civilidade e me revelasse para mim. Uma vez cru e, permanecida – como permanece por algum tempo – a crueza mesmo depois o solvente, me importam menos a reação do mundo, os amores ou meu lugar nele(s). Eu e a colas nos bastamos. Sem ela, sou todo carência. Carência e negação de mim. Já estou num manicômio e aqui me sinto bem, me parece o lugar certo para gente como eu, não fosse pela falta de cola. Mas um manicômio, dentro da cultura de verniz, é um dos pontos mais baixos a que um “cidadão” pode chegar e me incomoda que membros da cultura de verniz que me amam tenham me colocado aqui. Imagino como os meus irmãos, mãe e todos os outros que querem me impor formas que me deformam lidariam com este cotidiano. Como lidariam com a privação das pequenas coisinhas que simbolizam seus status e civilidade. Como lidariam com o fato de estarem onde nada disso – exceto cigarros – realmente importa. Onde vaidade é quase inexistente, onde a gula é motor primal, onde higiene é esporádico, onde ócio (para quem não tem papel ou caneta) é muito pouco criativo. Onde quase ninguém te ouve e muitos querem falar (isso nem é muito diferente do mundo “normal”; só em forma). Queria saber se lidariam tão bem quanto imagino que tenho lidado.


Liberdade daqui significa chutar o pau da barraca e mergulhar na cola até perceber, se for o caso, que preciso de ajuda.

Dificilmente esta liberdade de barraca chutada vai acontecer. Essa frustração antecipada gera revolta. Gosto da revolta. É diferente da apatia que carrego há alguns anos. Revolta é movimento. Contra os outros. Na direção que eu quero. Mesmo que seja a direção errada. Errada para todos. Desejada para mim até que se prove – para mim – contrária a mim também. Me negar a possibilidade me dá forças – revolta – para lutar. Alcançar. Descobrir. Aprender. Mudar. Lutar de novo. Cada um tem sua religião, sua fé, sua crença. Eu tenho a minha. E me negam. Chamam de racionalização. Chamem do que quiserem, mas não me proíbam, se sou capaz e tenho clareza para escrever isso. Se não cometi crimes (que não fosse pegar algum dinheiro de meus pais ou o carro da minha mãe escondido umas três vezes [e roubar uns brinquedos e revistas quando era guri]). Se nunca fui violento. Eu tenho o direito. Tenho o direito de ir, vir, ficar, buscar.

Pois é, o sentimento de encarceramento começa a tomar conta de mim. Pelo visto já não me sinto tão bem aqui, quanto imaginava. Preciso manter a cuca fria. Acho que é desejável para o manicômio cucas quentes, pois estas significam mais tempo de internação e mais dinheiro no caixa.

Os funcionários, ao contrário do que ouvi antes de vir para cá, não são nem mais nem menos tirânicos do que precisariam ser para lidar conosco. Não são nem um pouco tão tirânicos quanto somos com eles.

Alguns pacientes têm a satisfação – e não são poucos – em possuir ou pegar restos de alimentos dos outros, como se isso significasse ser bem sucedido aqui (estar entre os melhores caçadores/catadores). Houve um que me ofereceu um cigarro inteiro em troca da guimba que eu fumava (por ser guimba e minha).

Há trocas de carinhos e toques, beijocas entre pacientes de sexos diferentes por entre as grades. Isso é silenciosamente permitido pela equipe técnica (talvez por solidariedade a todas as outras tantas privações) e fica claro que a interação entre os sexos (mesmo separada por grades e apenas através de palavras) faz bem a todos e todas.

Voltando à paixão. Meu coração se divide entre Adeline, Bia e Juliana (ou seja,é  todo Clementine). Mas Adeline sem dúvida me ofereceria os maiores desafios, as maiores recompensas, a maior (in)compreensão.

Boa noite, Clementine(s). Boa noite, Universo. Que todos nós estejamos mais harmônicos, alegres e afetuados [?] amanhã.

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