Hoje me senti como um leão numa jaula de zôo. Nada para fazer. Apenas comer quando dão comida e dormir até não haver mais sono para dormir. Não posso chamar este estado de depressão; mais adequado seria prostração.
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Ontem tive uma conversa relativamente longa com a psicóloga de plantão (por volta das 23h). Falei abertamente do meu uso de droga/cola e tentei deixar claro que nesse momento a droga é mais importante que qualquer outra coisa. Se há uma sensação que tem me perseguido (e que talvez eu esteja construindo) é a de que estou perdendo gradativa e paulatinamente a minha liberdade de escolha. Deste manicômio, não sei para onde irei, nem quando irei. Não está em minhas mãos tais escolhas. Minha expectativa é que fique enjaulado aqui até a volta da minha mãe. Depois disso, acho que, como sempre, ela vai achar que a instituição anterior (que, na minha opinião, tanto me ajudou e acolheu) seja/foi ineficaz, pois não me “curou”. Prevejo, com receio e desgosto, acabar na Vila Passos, o que, desde já, creio firmemente não me trará nenhum benefício terapêutico ou de qualquer outra forma, senão alimentar a minha revolta.
Liberdade, liberdade, quantas longos dias, quantas extenuantes semanas tive que abdicar de você pelas poucas horas em que te tive inteira e completamente, em que me tive inteira e completamente?
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Hoje está havendo a reunião entre equipe técnica e familiares a portas trancadas atrás de mim. Ouço o burburinho e prevalecem vozes femininas. Não sei se minha tia está presente (e, sinceramente, prefiro ela à minha mãe [caso fosse possível esta última se teletransportar da idílica Europa para esta casa de doidos]).
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Falando em doidos, um novo paciente, bastante agressivo, chegou e já tentou escapar, chutando a porta que dá para o pátio quando um desavisado funcionário a abriu para entrar. Recusou-se a tomar remédio e bradou a liberdade que lhe foi tirada enquanto era imobilizado e medicado por três ou quatro homens. Ele apenas expôs o que todos nós já sentimos, mas a agressividade de seus atos e da repressão aplicada amplificou a intensidade da mensagem e calou fundo em mim.
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A figura que não evanesce do meu peito, que não é desse mundo, que eu queria transformar em personagem de uma história à altura de sua maravilha, é Adeline.
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Diminuindo meus receios acerca do futuro, Crica, psicóloga do albergue de drogados, esteve aqui para renegociar minha transferência para lá. Reafirmei minha vontade de usar cola o mais rápido possível, mas manter minha abstinência enquanto estiver sob responsabilidade da minha tia.
Após um período de mais ou menos duas semanas no albergue para o qual irei, poderei ter saídas acompanhadas. Não as aceitarei. Só sairei para o primeiro final de semana livre em que puder sair só para o meu retiro espiritual. Não sei ao certo o que farei depois, se voltarei para o albergue ou se seguirei o caminho que a cola me indicar.
Certo é que meu estoque incluirá 6 carteiras de Derby, 4 latinhas pequenas de cola e 1 lata média, 4 garrafas de coca de 1 litro e talvez uns Bonos e uns Torcidas. Gostaria muito de já ter a roupa de profeta. Acredito que isso ajudaria a proteger-me de possíveis meliantes pela aparência místico-excêntrica da persona incorporada.
Preciso dessa “peregrinação alucinógena” pela libertação, pela autodestruição (libertação da vida ordinária/dor?), por reconstrução (desconstrução?), iluminação (loucura?), pela ruptura com a humanidade que odeio em mim.
Eu acho que amo a loucura, pois tenho tão pouco e sou tão capaz dela.
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Eu vi em Adeline a face mais bela da loucura, a loucura que mais amo, a fada-rainha de quem seria o zangão encantado que eu sinto ser nas viagens de cola. E não só pelas suas formas, mas também por sua forma de ser. Pela manifestação de timidez irradiante, incandescente, com rompantes de bichos, gatos, dragões, galinhas, baba de chocolate ou iogurte; pelo jeito estranho e encantadoramente magricelo de garota de 22 anos, branquinha, buchudinha, de curtos cabelos negros e negros olhos, às vezes profundos e sombrios, às vezes estreitos-cheios, de onde saltitam fagulhas de alegria que não teriam outra definição que não pura infância.
E o charme desengonçado, o mais charmoso desengonço do mundo. Um ser que nasceu num mundo pior que ela, capaz de suportá-la, mas incapaz de entendê-la, de deixá-la ser plena. Uma princesa perfeita para o meu mundo de cola.
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