Para mim começou quando voltava da academia para casa e
passava por uma casa onde vez ou outra havia uns caras trabalhando com
carpintaria na garagem. Aquilo me lembrava diretamente a cola e eu olhava as
cores douradas do entardecer no verde das plantas daquela rua calma e pensava
em como seria legar vê-las através da cola. Logo o pensamento se desfazia. Porém,
às vezes voltava a me assombrar, quando via uma garrafinha de refrigerante num
canto de calçada ou ouvia barulho de obras dos edifícios em construção. Mas achava
que aquilo era muito pouco, não era o monstro despertando ainda. Esses dias
foram se somando, como comentado no último encontro para tratar sobre
dependência no CAPS e um belo dia estavam minhas companheiras todas com os
nervos à flor da pele, dizendo “tô a ponto de fazer uma merda”, aquilo me tomou
e eu disse “eu também”. Era o dia em que provavelmente eu iria fazer a barba e,
caso botasse a mão no dinheiro conseguiria três latinhas. O clique já estava
dado, não havia mais o pensar nas consequências, só a necessidade absoluta de
comprar e cheirar as colas. Fui me cagando para casa, não sei se por causa da excitação
emocional que me tomava. Tive que parar várias vezes no caminho para respirar e
não me melar no meio da rua. Estava com dinheiro para comprar duas carteiras de
US, mas antes de fazê-lo, conferi a grana e vi que daria para uma latinha de
cola. Caso o negócio da barba desse errado, pelo menos uma estava garantida.
Cheguei em casa e nada de grana, mamãe passaria mais tarde e deixaria o
dinheiro para irmos, eu e Jô, ao cabeleireiro. Sabendo que mamãe só voltaria às
16h e que permaneceria em casa a ideia do dinheiro da barba foi por água
abaixo. Depois de esvaziar os intestinos – que alívio –, não tive dúvida, parti
para a minha missão/obsessão. Fui a um armazém que não requer documentos para a
compra da cola e, com o meu “tesouro” em mãos, parti para o Sítio da Trindade,
pois achei que seria o lugar mais tranquilo e seguro para fazer o uso. Lembro
que quando comecei a cheirar e sentir aquele prazer, pensei, era isso o que eu
sentia quando jogava videogames, quando jogava Zelda, era isso que estava me
faltando. Não lembro muito mais depois disso. Lembro de ficar observando um
grupo de jovens frequentadores ao longe (escolhi um local escondido, embaixo de
umas árvores, onde a sombra me encobria e, por sorte havia uma pedra para me
sentar). Enfim, fiquei observando o movimento sem observar realmente. Os
melhores insights me vêm logo no começo do uso, que é quando faço um mergulho
emocional antes do torpor total. Lembro que pensei em minha mãe, mas não me
lembro o quê, lembro que pensei no CAPS, mas também não me recordo o conteúdo,
lembro que pensei em mim e na minha relação com a cola e com as coisas que me
cercam, pena não lembrar detalhes. A cola secou já era noite, foi quando me
levantei e resolvi ir para casa. Um dos seguranças do parque, creio, me
perguntou “isso é cola?” respondi que sim, mas que já estava de partida, só
gostaria que ele me indicasse o caminho. Fui andando até o meu prédio,
cutucando o plástico que ficou à procura de resquícios do efeito. Toquei a
campainha de trás e minha mãe abriu a porta. Estava moderadamente transtornada
e pediu que eu entregasse a lata, no que me neguei. Por fim, joguei a lata no
lixo e fomos direto para o Manicômio. Disse que não queria ir para lá, que não
me faria nenhum bem, mas ela, irredutível, disse que quando eu fizesse uma
coisa daquelas era lá o meu destino certo. Não relutei, obedeci. Os dias que
passei lá foram tenebrosos, fiquei a ponto de surtar. Foi diferente das outras
vezes, não que me identificasse menos com os loucos, mas pensar que passaria
meses vendo Ana Maria Braga na TV e ainda arregando cigarros, pois ela não me
mandou nenhum, foi certamente aterrador. Fiquei em um quarto sem banheiro e com
quatro ocupantes, para piorar as coisas. Graças aos céus tive um
conversa/desabafo com F., psicóloga de lá e disse e reiterei que aquele não era
o ambiente mais saudável para mim, que gostaria de voltar ao CAPS, a malhar, a
escrever meu blog e que a estada ali no manicômio estava me parecendo um
inferno. Ela disse que essa ótica tão negra que agora eu estava tendo do lugar
era porque eu não estava mais tão desestruturado e deprimido como antes e ainda
mencionou que minha recaída teria começado com a transgressão da bebedeira que
eu tomei algumas semanas antes, à despeito de orientações médicas e da opinião
da minha mãe. Disse que de uma transgressão, digamos, “menor” para a transgressão
máxima – a cola – era só uma questão de tempo, na minha busca por prazeres cada
vez maiores. Não sei se concordo, mas mamãe adorou a teoria, aventada também,
pelo que soube, por uma psicóloga do CAPS. Pelo sim, pelo não, só vou beber
quando me liberarem agora.
Por fim, graças aos céus, minha mãe me tirou do manicômio
hoje, não sei quanto tempo suportaria ainda lá sem ter um piripaque. Espero
voltar à minha rotina CAPS-academia após o carnaval (que provavelmente passarei
todo em casa) e não recair nunca mais. É muito ruim, quando a consciência
retorna e a conseqüência dos seus atos despenca nos seus ombros, a dor nas
pessoas amadas, o medo do descontrole que te dominou e roubou qualquer senso de
responsabilidade e respeito, o retrocesso nos vínculos de confiança e empatia;
tudo, tudo de odioso, a baixa-estima, o sentimento de fracasso e fraqueza que
só quem recai sabe.
Agora é olhar para frente e me reerguer dos escombros que eu
próprio fiz colapsar sobre minha cabeça e dentro da minha alma.
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