Lembrança aos motoqueiros: a moto é um objeto de metal revestido de carne. A sua carne. E, como já dizia o poeta, “a carne é frágil” (assim como a pele, os ossos e todo o conjunto que a acompanha). Perdi uma amiga motociclista esta semana. Ela sempre se esquecia disso.
No último dia em que nos encontramos, ela consertou minha havaiana que quebrou a caminho do CAPS (clips no primeiro buraquinho de baixo). |
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Foi do domingo para a segunda. Ou da segunda de madrugada para a segunda. Acordava tarde e já estavam todos reunidos à mesa jantando: lembro-me do meu irmão, minha mãe, meus dois irmãos filhos do meu padrasto e ele. Cumprimentava-os alegre e simpaticamente. Me sentida alegre e simpático. Os que estavam de costas, de costas ficaram e continuaram silenciosamente a refeição (no caso, os filhos do meu padrasto). Meu padrasto nem levantou o olhar ou mudou o sério e concentrado semblante no prato que tinha diante si. Só olharam para mim meu irmão e minha mãe, ambos com expressões de reprovação e certa raiva com a minha claramente desagradável presença.
Aquilo apagou por completo todo o bom humor e alegria de um sono bem dormido que trazia comigo. A mesa, o objeto em si, era a mesma que durante tantos anos foi palco de alegres encontros familiares na casa dos meus avós maternos. Reparei algo que me deixou perplexo: os cabelos do meu irmão – que nunca me disparara antes um olhar tão repreensivo assim – estavam muito grisalhos. Perguntei-lhe de meu sobrinho primeiro, filho dele, no que ele replicou que estava começando um doutorado em simulação de misturas entre sólidos e líquidos nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que fiquei feliz pela notícia de ele ter seguido os passos do pai, uma raio passou cortante pela minha espinha com o choque da informação: como poderia ele estar fazendo doutorado se é uma criança de quatro anos de idade que nem na alfabetização entrou ainda? Peguntei imediatamente qual era o ano em que estávamos e responderam algo entre 18 e 21 anos depois da data que eu supunha ser (ou seja, 2015). Eles não esperaram me recuperar do choque e mecanicamente responderam: “faz muito tempo que você vai dormir e acorda assim, sem lembrar de nada do que se passou”.
Me senti muito mal. Como que num pesadelo – o que de fato é o que estou narrando, obviamente –.
O que me deixou pior, entretanto, é que aquilo poderia explicar o desagrado em me ver, mas não a raiva, como se eu houvesse feito recentemente algo errado de que não tivesse a mínima idéia. Tinha certeza disso. E tive a certeza que tinha sido algo relacionado ao uso de drogas. Uso este que também tive como certo ter voltado a ser fato recorrente como há não tão pouco tempo atrás (2015). Me senti terrivelmente mal. O olhar deles para mim dizia de forma cristalina: “que inferno! Por que esse cara continua a existir? O pior é que temos que suportar porque é da família. Seria um alívio se ele morresse...”
Abatido com a minha realidade que eu mesmo desconhecia por completo - aliás, conhecia-a muitíssimo pouco -, perguntei da minha irmã. No que secamente respondeu o meu irmão, como se o fizesse pela milésima vez: “morreu”. Na hora me veio uma lembrança e completei “no parto da segunda filha, não foi?”. Ele aquiesceu. Percebi, então, que fatos muito marcantes ainda deixavam rastros na minha memória e uma imagem da primeira filha dela (minha irmã), com cerca de um ano de idade, me veio à lembrança (que ainda não nasceu, mas chega em breve).
Finalmente, a óbvia e insuportável conclusão desabou sobre minha cabeça: a mesma coisa, o mesmo pesadelo em vida se repetiria amanhã e depois, e depois e depois, até me eu morrer. O desespero dessa constatação foi demais. Acordei.
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Lição da semana:
Adicto: em situações/locais em que sinta o leve perigo de recaída, não hesite nem um segundo: FUJA! É – e sempre será – mais forte que você. Não adianta tentar ser auto-cofiante (estúpido). Você vai perder. Cem por cento de certeza.
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