sábado, 3 de dezembro de 2011

Diários de um Manicômio XI

29 de agosto de 2011

À minha frente, na engordurada mesa em que agora escrevo, o profeta dorme debruçado sobre bíblias, tendo as cumbucas com restos de comida ao seu redor. Ele costuma guardar pães entre as páginas do livro sagrado. Estranhamente, apesar da descrição acima, ele não é uma figura repulsiva. O branco de suas roupas é sempre muito alvo, inclusive das havaianas (as mais brancas que já vi). Eu nutro um carinho gratuito por ele, seu cabelo cortado de uma forma meio santa, meio roqueiro dos anos 60; sua barba meio santa, meio anos 60 também. E ele tem um lindo, franco sorriso que surge quando raramente se deixa rir. Não sei a idade dele. Tem cabelos lisos, nem muito, nem pouco grisalhos, com mechas alouradas, castanho-claras. Tem olhos claros também, porém um deles é cego ou lhe falta (há uma mancha rósea e molhada no lugar do globo ocular, embora todas as expressões faciais estejam mantidas). A mim me lembra um mórmon ou coisa do gênero.

Segundo reza a lenda (e ressalto que parece não passar de mito) é que ficou caolho na faculdade de medicina, ao realizar a dissecação de uma mulher – obviamente nua. O choque entre a visão nada religiosa do procedimento e os seus rígidos preceitos cristãos, o motivaram a mutilar o olho, baseado sabe-se lá em que passagem/preceito bíblico (me parece óbvio também que uma perturbação psiquiátrica latente tenha contribuído para tal ato de auto-flagelação, mas quem sou eu para julgar mitos e lendas?).

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No começo, o profeta foi ríspido comigo, talvez por eu ser um novo ser/possibilidade/mudança/diferença em seu cotidiano, talvez por não dominar ainda a complexa logística de caminhar pelo piso de mármore xadrez do refeitório evitando os quadrados pretos. Sei que hoje nossa relação é boa, embora muitas vezes não entenda o que ele fala, mais por causa da dicção do que pelo conteúdo. Ele possui uma série de pequenos rituais e realiza “tratamentos” em outros pacientes. Pela terminologia que usa no que tange assuntos biológicos/biomédicos, acredito realmente que ele tenha cursado alguma ciência biológica ou de saúde antes de “romper/quebrar”. Estes conhecimentos ele agora acredita já estavam inscritos na Bíblia (em específico no Livro de Jó, se não me engano). Tentarei ler, mas duvido que o livro dos livros mencione detalhes de citologia ou sistema endócrino.

Bom, já falei suficientemente sobre o profeta, basta-me agora ressaltar que este não é o tipo de profeta que quero me tornar (pelo menos não inteiramente). Não sei, entretanto, se não acabarei exatamente como ele, levando em conta que provavelmente não deixarei o uso de cola em tempo hábil para evitar tal ventura.

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Aconteceu-me hoje a invasão de privacidade última; a que mais temi em toda a minha vida. Tinha a utopia de que este momento seria inviolável até o fim dos meus dias, mas, eis que hoje, enquanto estava nu na latrina, rodeado pelo cheiro asqueroso da minha própria merda, com o braço enfiado entre as pernas, limpando o meu cu, um dos meus colegas de quarto – ao qual havia previamente pedido privacidade para fazer tais necessidades – entra banheiro adentro para jogar um saquinho vazio de Club Social no lixo. O lixeiro fica ao lado da latrina e seu acesso estava bloqueado pelas minhas pernas arreganhadas de forma que meu braço – e o papel higiênico – alcançassem o meu cu. Calmamente, com a mão livre, peguei o pacotinho e, com certa dose de contorcionismo, joguei-o no lixo. O colega ainda deixou-se estar por alguns instantes prostrado à minha frente, como que para “apreciar a cena”.

Fiquei pasmo comigo mesmo e com a tranqüilidade com que vivenciei o fato. Houve raiva e vergonha, mas foram brandos e passageiros (talvez por ver o intruso como um louco e por perceber que privacidade é uma regalia da qual não se dispõe, é abstrata, nesse lugar sem trancas).

Têm sido ótimas essas aparições súbitas durante a minha nudez para desmistificar/reduzir um pouco a síndrome do pau pequeno que criei na minha cabeça desde muito jovem. Os dois que viram meu pênis não comentaram nem fizeram chacota disso.

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Eriquinha voltou e por ela só tenho tesão. Penso em tatuar o nome de Adeline no meu braço, com a letra dela, extraída de um desenho que fez para mim.

[Nota 06/09/11: o desenho que eu fiz em troca para ela foi jogado fora, pois tinha um coração (onde escrevi, além do sabor que o seu coração tinha no dia – morango, segundo ela – as qualidades que via nele) e esse coração de alguma forma soou como impuro/impudico (e na verdade era, pois havia o meu desejo/amor/carinho ali). Depois ela me perguntou se queria que tirasse o desenho do lixo e eu respondi que era dela e que a escolha, por conseqüência, também.]



XXXXX

Há uma senhora cuja perturbação mental me assombra para o bem e para o mal. Ela veste-se como uma crente. Roupas comportadas, sóbrias, saia longa, cabelo longo e ainda muito preto, de cabocla, como as feições, preso atrás da cabeça. Ela passa todo o tempo em que está acordada com as malas prontas para partir, dialogando com várias mulheres (algumas são funcionárias da clínica, outras aparentemente familiares ou amigas). O problema é que essas mulheres não existem. Todos os diálogos são perguntados, respondidos, julgados, negados ou definidos, enfim, verbalizados/elaborados/encenados por ela mesma. Tudo com inabalável tranqüilidade na expressão e na voz, quase como uma reza, que não condiz com o conteúdo compulsivo-obsessivo do tema: sair dali, da ala feminina, ir para o Ipsep, para outro lugar, para a liberdade seja ela como for. Interessante é que, estando aprisionada com os personagens de seu próprio teatro, ela não parece infeliz. Afinal tem companhia, um objetivo, uma razão de ser. E todas elas dentro de si mesma conseguem se entender, o que nem sempre se dá entre os demais pacientes-indivíduos fora dela.
Não vejo isso acontecer com os outros internos mais lúcidos, como eu. Em nós, vejo dor sem direção, vejo nenhum objetivo além de mais torpor/remédios, fuga. Se bem que o comportamento da senhora cabocla também é uma fuga. Mas uma fuga da qual ela não consegue escapar. E nós conseguimos? Em verdade, somos mais iguais do queria crer no início do parágrafo. Melhor virar profeta.

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Vai ficar linda como ela é linda.


O que eu quero?
- Tatuar o nome de Adeline no meu braço;
- Cheirar 3 pequenas e 1 média de Norcola no meio do mato;
- Descobrir se isso me transformará mais em louco ou profeta (se é que há diferença);
- Se louco, serei completamente livre;
- Se profeta, seguirei minha vocação;
- Entre a dor e o nada, eu prefiro o nada;

Antes do nada, eu quero voltar ao paraíso, sair do casulo e nunca mais voltar. Nunca mais eu. Nunca mais lagarta. Borboleta em campo ensolarado. Livre. Ar. Só. E nunca só, pois continuarei amando todos. Amando tudo. Pois eu sou parte de tudo. E tudo nunca estará completo sem mim.

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Por que eu sou assim?

- Por causa do que eu nasci sendo (do que veio do útero, do espermatozóide e do óvulo e da alimentação e do tempo de gestação, por causa da época histórica [nacional, mundial, universal] em que vivi e vivo);

- Por causa do que os meus pais tentaram me ensinar e os meios pelos quais tentaram me ensinar; e como interpretei o que eles tentaram me ensinar e os meios pelos quais o fizeram;

- Por causa das coisas que o mundo e as instituições me forçaram a aprender ou o que fui forçado a me submeter para coabitar os meios sociais aos quais pertenço, pertenci e transito;

- Por causa do que eu busquei por prazer/interesse/curiosidade;

- Por causa de uma vontade enorme de não ser.

[Nota 27/11/11: eu poderia ter dito simplesmente que eu sou assim por causa da genética e da constante interação/iteração entre o sujeito Boto e o meio externo.]

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