domingo, 10 de fevereiro de 2013

Recaída





Para mim começou quando voltava da academia para casa e passava por uma casa onde vez ou outra havia uns caras trabalhando com carpintaria na garagem. Aquilo me lembrava diretamente a cola e eu olhava as cores douradas do entardecer no verde das plantas daquela rua calma e pensava em como seria legar vê-las através da cola. Logo o pensamento se desfazia. Porém, às vezes voltava a me assombrar, quando via uma garrafinha de refrigerante num canto de calçada ou ouvia barulho de obras dos edifícios em construção. Mas achava que aquilo era muito pouco, não era o monstro despertando ainda. Esses dias foram se somando, como comentado no último encontro para tratar sobre dependência no CAPS e um belo dia estavam minhas companheiras todas com os nervos à flor da pele, dizendo “tô a ponto de fazer uma merda”, aquilo me tomou e eu disse “eu também”. Era o dia em que provavelmente eu iria fazer a barba e, caso botasse a mão no dinheiro conseguiria três latinhas. O clique já estava dado, não havia mais o pensar nas consequências, só a necessidade absoluta de comprar e cheirar as colas. Fui me cagando para casa, não sei se por causa da excitação emocional que me tomava. Tive que parar várias vezes no caminho para respirar e não me melar no meio da rua. Estava com dinheiro para comprar duas carteiras de US, mas antes de fazê-lo, conferi a grana e vi que daria para uma latinha de cola. Caso o negócio da barba desse errado, pelo menos uma estava garantida. Cheguei em casa e nada de grana, mamãe passaria mais tarde e deixaria o dinheiro para irmos, eu e Jô, ao cabeleireiro. Sabendo que mamãe só voltaria às 16h e que permaneceria em casa a ideia do dinheiro da barba foi por água abaixo. Depois de esvaziar os intestinos – que alívio –, não tive dúvida, parti para a minha missão/obsessão. Fui a um armazém que não requer documentos para a compra da cola e, com o meu “tesouro” em mãos, parti para o Sítio da Trindade, pois achei que seria o lugar mais tranquilo e seguro para fazer o uso. Lembro que quando comecei a cheirar e sentir aquele prazer, pensei, era isso o que eu sentia quando jogava videogames, quando jogava Zelda, era isso que estava me faltando. Não lembro muito mais depois disso. Lembro de ficar observando um grupo de jovens frequentadores ao longe (escolhi um local escondido, embaixo de umas árvores, onde a sombra me encobria e, por sorte havia uma pedra para me sentar). Enfim, fiquei observando o movimento sem observar realmente. Os melhores insights me vêm logo no começo do uso, que é quando faço um mergulho emocional antes do torpor total. Lembro que pensei em minha mãe, mas não me lembro o quê, lembro que pensei no CAPS, mas também não me recordo o conteúdo, lembro que pensei em mim e na minha relação com a cola e com as coisas que me cercam, pena não lembrar detalhes. A cola secou já era noite, foi quando me levantei e resolvi ir para casa. Um dos seguranças do parque, creio, me perguntou “isso é cola?” respondi que sim, mas que já estava de partida, só gostaria que ele me indicasse o caminho. Fui andando até o meu prédio, cutucando o plástico que ficou à procura de resquícios do efeito. Toquei a campainha de trás e minha mãe abriu a porta. Estava moderadamente transtornada e pediu que eu entregasse a lata, no que me neguei. Por fim, joguei a lata no lixo e fomos direto para o Manicômio. Disse que não queria ir para lá, que não me faria nenhum bem, mas ela, irredutível, disse que quando eu fizesse uma coisa daquelas era lá o meu destino certo. Não relutei, obedeci. Os dias que passei lá foram tenebrosos, fiquei a ponto de surtar. Foi diferente das outras vezes, não que me identificasse menos com os loucos, mas pensar que passaria meses vendo Ana Maria Braga na TV e ainda arregando cigarros, pois ela não me mandou nenhum, foi certamente aterrador. Fiquei em um quarto sem banheiro e com quatro ocupantes, para piorar as coisas. Graças aos céus tive um conversa/desabafo com F., psicóloga de lá e disse e reiterei que aquele não era o ambiente mais saudável para mim, que gostaria de voltar ao CAPS, a malhar, a escrever meu blog e que a estada ali no manicômio estava me parecendo um inferno. Ela disse que essa ótica tão negra que agora eu estava tendo do lugar era porque eu não estava mais tão desestruturado e deprimido como antes e ainda mencionou que minha recaída teria começado com a transgressão da bebedeira que eu tomei algumas semanas antes, à despeito de orientações médicas e da opinião da minha mãe. Disse que de uma transgressão, digamos, “menor” para a transgressão máxima – a cola – era só uma questão de tempo, na minha busca por prazeres cada vez maiores. Não sei se concordo, mas mamãe adorou a teoria, aventada também, pelo que soube, por uma psicóloga do CAPS. Pelo sim, pelo não, só vou beber quando me liberarem agora.

Por fim, graças aos céus, minha mãe me tirou do manicômio hoje, não sei quanto tempo suportaria ainda lá sem ter um piripaque. Espero voltar à minha rotina CAPS-academia após o carnaval (que provavelmente passarei todo em casa) e não recair nunca mais. É muito ruim, quando a consciência retorna e a conseqüência dos seus atos despenca nos seus ombros, a dor nas pessoas amadas, o medo do descontrole que te dominou e roubou qualquer senso de responsabilidade e respeito, o retrocesso nos vínculos de confiança e empatia; tudo, tudo de odioso, a baixa-estima, o sentimento de fracasso e fraqueza que só quem recai sabe.

Agora é olhar para frente e me reerguer dos escombros que eu próprio fiz colapsar sobre minha cabeça e dentro da minha alma. 


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